É preciso perguntar a sério se nós acreditamos realmente no perdão dos
pecados, como professamos no Credo. E então podemos nós refutar a alguém a
absolvição? Seria esse o comportamento do bom pastor e do samaritano
misericordioso?
Publicamos aqui as respostas do cardeal Walter Kasper na discussão do consistório dos dias 20 e 21 de
fevereiro, que serão publicadas, juntamente com a sua conferência, no livro Il vangelo della
famiglia (Ed. Queriniana).
leia mais:
O artigo foi publicado no jornal L’Osservatore Romano,
12-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Misericórdia e verdade
A misericórdia está ligada à verdade, mas também vice-versa: a verdade está
ligada à misericórdia. A misericórdia é o princípio hermenêutico para
interpretar a verdade. Significa que a verdade deve ser feita na
caridade (Ef 4, 15). Segundo a compreensão católica, deve-se interpretar a
palavra de Jesus no contexto da tradição da Igreja inteira. No
nosso caso, essa tradição, de fato, não é tão unilinear como muitas vezes se
afirmou.
Há questões históricas e diferentes opiniões de especialista a serem levadas
a sério, das quais não podemos simplesmente nos desembaraçar. A Igreja buscou
encontrar continuamente um caminho para além do rigorismo e do laxismo, isto é,
tentou fazer a verdade na caridade.
A unicidade de cada pessoa é um aspecto constitutivo fundamental da
antropologia cristã. Nenhum ser humano é simplesmente um caso de uma essência
humana universal, nem pode ser julgado apenas segundo uma regra
geral. Jesus nunca falou de um “-ismo”: nem de individualismo,
nem de consumismo, nem de capitalismo, nem de relativismo, nem de pansexualismo
etc.
Em uma parábola, Jesus fala do bom pastor que deixa as 99 ovelhas para ir em
busca da única que se perdeu, para trazê-la novamente para o redil. E
acrescenta: “Assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se
converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc
15, 1-7).
Em outras palavras: não existem divorciados em segunda união, mas sim
situações muito diversificadas de divorciados em segunda união, que devem ser
acuradamente distinguidas. Não há nem “a” situação objetiva, que se
opõe à admissão à comunhão, mas há muitas situações bastante diferentes.
Se, por exemplo, uma mulher foi deixada pelo marido sem a sua culpa
e, por amor aos filhos, precisa de um homem ou de um pai, busca viver
honestamente uma vida cristã no segundo matrimônio contraído civilmente
e, em uma segunda família, educa cristãmente os filhos e se compromete
exemplarmente na paróquia (como muitas vezes acontece), então isso também faz
parte da situação objetiva que se distingue essencialmente daquela que,
infelizmente, se constata muito frequentemente, ou seja, de alguém que, mais ou
menos indiferente do ponto de vista religioso, contrai um segundo matrimônio
civil e vive nele mais ou menos distante da Igreja.
Portanto, não se pode partir de um conceito da situação objetiva
reduzida a um único aspecto. Ao contrário, é preciso perguntar a sério
se nós acreditamos realmente no perdão dos pecados, como professamos no Credo, e
se acreditamos realmente que alguém que cometeu um erro, se se arrepende e, não
o podendo eliminar sem nova culpa, porém, faz tudo o que lhe é possível, pode
obter o perdão de Deus. E então podemos nós refutar-lhe a absolvição?
Seria esse o comportamento do bom pastor e do samaritano
misericordioso?
Para esses casos individuais, é verdade, a tradição
católica não conhece, diferentemente das Igrejas ortodoxas, o princípio
da oikonomia, mas conhece o princípio análogo da
epiqueia, do discernimento dos espíritos, do equiprobabilismo
(Afonso Maria de Ligório), ou a concepção tomista da
fundamental virtude cardeal da prudência, que aplica uma norma geral na
situação concreta (o que, no sentido de Tomás de Aquino, não
tem nada a ver com a ética da situação).
Em síntese: não há uma solução geral para todos os casos.
Não se trata “da” admissão “dos” divorciados em segunda união. Ao contrário, é
preciso levar a sério a unicidade de cada pessoa individual e de cada situação
individual, e acuradamente distinguir e decidir caso a caso. A esse respeito, o
caminho da conversão e da penitência, tão variado como a Igreja antiga o
conheceu, não é o caminho da grande massa, mas sim o caminho de cristãos
individuais que levaram realmente a sério os sacramentos.
O beato John Henry Newman escreveu o famoso
livro On Consulting the Faithful in Matters of
Doctrine. Ele mostrou que, durante a crise ariana dos
séculos IV e V, não foram os bispos, mas sim os fiéis que conservaram a fé na
Igreja. A seu tempo, Newman foi criticadíssimo, mas assim se tornou um
precursor do Vaticano II, que novamente pôs em evidência
claramente a doutrina do sentido da fé que é dado a cada cristão através do
batismo (Lumen gentium 12, 35).
É necessário levar a sério esse “sensus fidei” dos fiéis justamente
na nossa questão. Aqui, no consistório, somos todos célibes, enquanto a
maior parte dos nossos fiéis vivem a fé no evangelho da família, em situações
concretas e às vezes difíceis. Por isso, nós devemos ouvir o seu
testemunho e também o que colaboradores e colaboradoras pastorais e consultores
na pastoral das famílias têm a nos dizer: e eles têm algo a nos
dizer.
Toda a questão, por isso, não pode ser decidida apenas por uma comissão, da
qual fazem parte apenas cardeais e bispos. Isso não exclui que a última palavra
no Sínodo esteja em acordo com o papa. Em relação à nossa questão, há grandes
expectativas na Igreja. Sem dúvida, não podemos responder a todas as
expectativas. Mas se repetirmos apenas as respostas que presumivelmente já foram
sempre dadas, isso levará a uma péssima desilusão.
Como testemunhas da esperança, não podemos nos deixar guiar por uma
hermenêutica do medo. São necessárias coragem e sobretudo franqueza
(parrésia) bíblica. Se não quisermos isso, então, ao contrário, não
deveria realizar nenhum Sínodo sobre o nosso tema, porque, nesse caso, a
situação posterior seria pior do que a anterior.
Ao abrir a porta, devemos ao menos deixar uma fresta para a esperança e para
as expectativas das pessoas. E dar ao menos um sinal de que, também da nossa
parte, levamos a sério as esperanças, assim como as perguntas, os sofrimentos e
as lágrimas de tantos cristãos sérios.
Quatro passos
As considerações apresentadas no consistório foram precedidas, há diversos
anos, por diálogos com pastores em cura de almas, consultores matrimoniais e
familiares, além de casais e famílias interessadas. Imediatamente depois da
conferência, tais conversações foram retomadas espontaneamente. Sobretudo
coirmãos religiosos querem saber, de preferência muito rapidamente, o que eles
devem ou podem fazer concretamente. Essas perguntas são compreensíveis e
justificadas. No entanto, não há receitas simples. Muito menos se pode
impor na Igreja determinadas soluções arbitrariamente e construindo maquinações
ameaçadoras.
Para chegar a uma solução possivelmente unânime, é necessário dar alguns
passos. Nas questões referentes à sexualidade, ao matrimônio e à
família,
1- o primeiro passo consiste, acima de tudo, em tornar-se novamente capazes de falar e em encontrar uma saída da imobilidade de um emudecimento resignado diante da situação de fato. O simples fato de se perguntar o que é lícito e, ao invés, o que é proibido não ajuda muito aqui.
As questões relativas a matrimônio e família – dentre as quais a questão dos
divorciados em segunda união é apenas uma, embora seja um problema urgente –
fazem parte do grande contexto dentro do qual nos interrogamos sobre como as
pessoas podem encontrar a felicidade e a plenitude da sua vida.
Faz parte desse contexto, de forma totalmente
essencial, o modo responsável e gratificante de se relacionar com o dom
da sexualidade, dom feito e confiado pelo Criador aos seres humanos. A
sexualidade deve fazer sair do beco sem saída e da solidão de um individualismo
autorreferencial e levar ao “tu” de outra pessoa e ao “nós” da comunidade
humana. O isolamento da sexualidade de tais relações globalmente humanas e a sua
redução a sexo não levaram à liberação tão decantada, mas sim à sua banalização
e comercialização.
A morte do amor erótico e o envelhecimento da nossa sociedade
ocidental são a consequência disso. Matrimônio e família são o último
ninho de resistência contra uma economização e tecnicização da vida que tudo
calcula friamente e que tudo devora. Temos todas as razões para nos
comprometermos o máximo possível pelo matrimônio e pela família, e sobretudo
para acompanhar e encorajar os jovens nesse caminho.
2. Um segundo passo, dentro da Igreja, consiste em uma renovada espiritualidade pastoral, que se despeça de uma estreita consideração legalista e de um rigorismo não cristão, que sobrecarrega as pessoas com pesos insuportáveis, que nós mesmos, clérigos, não queremos carregar e que nem sabemos carregar (cfr. Mt 23, 4).
As Igrejas orientais, com o seu princípio da oikonomia,
desenvolveram um percurso para além da alternativa entre rigorismo e laxismo,
com o qual nós podemos aprender ecumenicamente. No Ocidente, conhecemos a
epiqueia, a justiça aplicada ao caso individual, que, segundo Tomás de
Aquino, é a justiça maior.
Na oikonomia, não se trata principalmente de um princípio do direito
canônico, mas sim de uma fundamental atitude espiritual e pastoral, que
aplica o Evangelho segundo o estilo de um bom pai de família, entendido
como oikonómos, segundo o modelo da economia divina da
salvação.
Deus, na sua economia de salvação, deu muitos passos junto com o seu
povo e, no Espírito Santo, percorreu um longo caminho com a Igreja.
Analogamente, a Igreja deve acompanhar as pessoas no seu
caminhar rumo ao fim da vida e aqui deveria ser consciente de que
também nós, como pastores, estamos sempre a caminho e que, muito frequentemente,
erramos, devemos começar de novo e – graças à misericórdia de Deus, que nunca
tem fim – também podemos sempre recomeçar.
A oikonomia não é um percurso ou mesmo uma saída
barata. Ela faz com que se leve a sério o fato de que, como Martinho Lutero formulou justamente na
primeira das suas teses sobre a indulgência de 1517, toda a vida do
cristão é uma penitência, isto é, uma contínua mudança do modo de pensar e uma
nova orientação (metanoia). O fato de que nós muitas vezes esqueçamos
isso e imperdoavelmente ignoramos o sacramento da penitência como sacramento da
misericórdia é uma das feridas mais profundas do cristianismo atual.
A via penitencial (via poenitentialis) não é, por isso, só
uma coisa para divorciados em segunda união, mas sim para todos os
cristãos. Apenas se, na pastoral, nos orientarmos de novo nesse modo
profundo e global é que progrediremos também nas questões concretas que estão à
nossa frente, passo a passo.
3. Um terceiro passo diz respeito à tradução institucional dessas considerações antropológicas espirituais. Tanto o sacramento do matrimônio quanto o sacramento da eucaristia não são apenas um assunto individual privado: eles possuem um caráter comunitário e público, e por isso uma dimensão jurídica. O matrimônio celebrado na igreja deve ser compartilhado por toda a comunidade da Igreja, concretamente da paróquia, e o matrimônio civil está sob a tutela da Constituição e do ordenamento jurídico do Estado.
Considerado desse modo amplo, os procedimentos canônicos em questões
matrimoniais precisam de uma reorientação espiritual e pastoral. Já hoje existe
um amplo consenso sobre o fato de que procedimentos unilateralmente
administrativos e legais, segundo o princípio do tuciorismo, não prestam justiça
à salvação e ao bem das pessoas e à sua concreta situação de vida, muitas vezes
complexa.
Essa é uma peroração não por uma gestão mais laxista e por uma maior largueza
nas declarações de nulidade matrimonial, mas sim, ao contrário, por uma
simplificação e aceleração desses procedimentos e sobretudo para situá-los
dentro de colóquios pastorais e espirituais, no contexto de uma consultoria de
tipo pastoral e espiritual, no espírito do bom pastor e do samaritano
misericordioso.
4. Discute-se de modo controverso sobretudo um quarto passo, em referência a situações em que uma declaração de nulidade do primeiro matrimônio não é possível ou, como ocorre em não poucos casos, não é desejada por ser considerada não honesta.
A Igreja deveria encorajar, acompanhar e sustentar, a partir de todos os
pontos de vista, aqueles que, depois de uma separação civil, tomam o difícil
caminho de permanecer sozinhos.
Novas normas de Igrejas domésticas podem aqui ser de grande ajuda e dar uma
nova possibilidade de sentir-se em casa. O caminho para possibilitar a
divorciados que se casaram de novo civilmente, em situações concretas e depois
de um período de orientação os sacramentos da penitência e da eucaristia deve
ser percorrido em casos singulares com a tolerância e com o tácito consenso do
bispo. Essa discrepância entre o ordenamento oficial e a tácita práxis local não
é uma boa situação nova.
Embora uma casuística não seja possível nem desejável, critérios vinculantes
deveriam valer e ser declarados publicamente. Na minha conferência, tentei fazer
isso. Essa tentativa, obviamente, pode ser melhorada. No entanto, a esperança de
muitíssimas pessoas é justificada: a esperança de que o próximo Sínodo,
guiado pelo Espírito de Deus, depois de ter ponderado todos os pontos de vista,
possa indicar um bom e comum caminho.
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