quinta-feira, 20 de março de 2014

Misericórdia e verdade para os divorciados em segunda união




IHU - Unisinos


Adital

É preciso perguntar a sério se nós acreditamos realmente no perdão dos pecados, como professamos no Credo. E então podemos nós refutar a alguém a absolvição? Seria esse o comportamento do bom pastor e do samaritano misericordioso?

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Publicamos aqui as respostas do cardeal Walter Kasper na discussão do consistório dos dias 20 e 21 de fevereiro, que serão publicadas, juntamente com a sua conferência, no livro Il vangelodellafamiglia (Ed. Queriniana).O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 12-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.Eis o texto.

Misericórdia e verdade


Por Walter Kasper

A misericórdia está ligada à verdade, mas também vice-versa: a verdade está ligada à misericórdia. A misericórdia é o princípio hermenêutico para interpretar a verdade. Significa que a verdade deve ser feita na caridade (Ef 4, 15). Segundo a compreensão católica, deve-se interpretar a palavra de Jesus no contexto da tradição da Igreja inteira. No nosso caso, essa tradição, de fato, não é tão unilinear como muitas vezes se afirmou. Há questões históricas e diferentes opiniões de especialista a serem levadas a sério, das quais não podemos simplesmente nos desembaraçar. A Igreja buscou encontrar continuamente um caminho para além do rigorismo e do laxismo, isto é, tentou fazer a verdade na caridade.

A unicidade de cada pessoa é um aspecto constitutivo fundamental da antropologia cristã. Nenhum ser humano é simplesmente um caso de uma essência humana universal, nem pode ser julgado apenas segundo uma regra geral. Jesus nunca falou de um "-ismo": nem de individualismo, nem de consumismo, nem de capitalismo, nem de relativismo, nem de pansexualismo etc. Em uma parábola, Jesus fala do bom pastor que deixa as 99 ovelhas para ir em busca da única que se perdeu, para trazê-la novamente para o redil. E acrescenta: "Assim, haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão" (Lc 15, 1-7).

Em outras palavras: não existem divorciados em segunda união, mas sim situações muito diversificadas de divorciados em segunda união, que devem ser acuradamente distinguidas. Não há nem "a" situação objetiva, que se opõe à admissão à comunhão, mas há muitas situações bastante diferentes. Se, por exemplo, uma mulher foi deixada pelo marido sem a sua culpa e, por amor aos filhos, precisa de um homem ou de um pai, busca viver honestamente uma vida cristã no segundo matrimônio contraído civilmente e, em uma segunda família, educa cristãmente os filhos e se compromete exemplarmente na paróquia (como muitas vezes acontece), então isso também faz parte da situação objetiva que se distingue essencialmente daquela que, infelizmente, se constata muito frequentemente, ou seja, de alguém que, mais ou menos indiferente do ponto de vista religioso, contrai um segundo matrimônio civil e vive nele mais ou menos distante da Igreja.

Portanto, não se pode partir de um conceito da situação objetiva reduzida a um único aspecto. Ao contrário, é preciso perguntar a sério se nós acreditamos realmente no perdão dos pecados, como professamos no Credo, e se acreditamos realmente que alguém que cometeu um erro, se se arrepende e, não o podendo eliminar sem nova culpa, porém, faz tudo o que lhe é possível, pode obter o perdão de Deus. E então podemos nós refutar-lhe a absolvição? Seria esse o comportamento do bom pastor e do samaritano misericordioso?

Para esses casos individuais, é verdade, a tradição católica não conhece, diferentemente das Igrejas ortodoxas, o princípio da oikonomia, mas conhece o princípio análogo da epiqueia, do discernimento dos espíritos, do equiprobabilismo (Afonso Maria de Ligório), ou a concepção tomista da fundamental virtude cardeal da prudência, que aplica uma norma geral na situação concreta (o que, no sentido de Tomás de Aquino, não tem nada a ver com a ética da situação).
Em síntese: não há uma solução geral para todos os casos. Não se trata "da" admissão "dos" divorciados em segunda união. Ao contrário, é preciso levar a sério a unicidade de cada pessoa individual e de cada situação individual, e acuradamente distinguir e decidir caso a caso. A esse respeito, o caminho da conversão e da penitência, tão variado como a Igreja antiga o conheceu, não é o caminho da grande massa, mas sim o caminho de cristãos individuais que levaram realmente a sério os sacramentos.

O beato John Henry Newman escreveu o famosolivro On Consulting the Faithful in Matters of Doctrine. Ele mostrou que, durante a crise ariana dos séculos IV e V, não foram os bispos, mas sim os fiéis que conservaram a fé na Igreja. A seu tempo, Newman foi criticadíssimo, mas assim se tornou um precursor do Vaticano II, que novamente pôs em evidência claramente a doutrina do sentido da fé que é dado a cada cristão através do batismo (Lumen gentium 12, 35).

É necessário levar a sério esse "sensusfidei" dos fiéis justamente na nossa questão. Aqui, no consistório, somos todos célibes, enquanto a maior parte dos nossos fiéis vivem a fé no evangelho da família, em situações concretas e às vezes difíceis. Por isso, nós devemos ouvir o seu testemunho e também o que colaboradores e colaboradoras pastorais e consultores na pastoral das famílias têm a nos dizer: e eles têm algo a nos dizer.

Toda a questão, por isso, não pode ser decidida apenas por uma comissão, da qual fazem parte apenas cardeais e bispos. Isso não exclui que a última palavra no Sínodo esteja em acordo com o papa. Em relação à nossa questão, há grandes expectativas na Igreja. Sem dúvida, não podemos responder a todas as expectativas. Mas se repetirmos apenas as respostas que presumivelmente já foram sempre dadas, isso levará a uma péssima desilusão. Como testemunhas da esperança, não podemos nos deixar guiar por uma hermenêutica do medo. São necessárias coragem e sobretudo franqueza (parrésia) bíblica. Se não quisermos isso, então, ao contrário, não deveria realizar nenhum Sínodo sobre o nosso tema, porque, nesse caso, a situação posterior seria pior do que a anterior.

Ao abrir a porta, devemos ao menos deixar uma fresta para a esperança e para as expectativas das pessoas. E dar ao menos um sinal de que, também da nossa parte, levamos a sério as esperanças, assim como as perguntas, os sofrimentos e as lágrimas de tantos cristãos sérios.
Quatro passos
As considerações apresentadas no consistório foram precedidas, há diversos anos, por diálogos com pastores em cura de almas, consultores matrimoniais e familiares, além de casais e famílias interessadas. Imediatamente depois da conferência, tais conversações foram retomadas espontaneamente. Sobretudo coirmãos religiosos querem saber, de preferência muito rapidamente, o que eles devem ou podem fazer concretamente. Essas perguntas são compreensíveis e justificadas. No entanto, não há receitas simples. Muito menos se pode impor na Igreja determinadas soluções arbitrariamente e construindo maquinações ameaçadoras.

Para chegar a uma solução possivelmente unânime, é necessário dar alguns passos. Nas questões referentes à sexualidade, ao matrimônio e à família, o primeiro passo consiste, acima de tudo, em tornar-se novamente capazes de falar e em encontrar uma saída da imobilidade de um emudecimento resignado diante da situação de fato. O simples fato de se perguntar o que é lícito e, ao invés, o que é proibido não ajuda muito aqui. As questões relativas a matrimônio e família – dentre as quais a questão dos divorciados em segunda união é apenas uma, embora seja um problema urgente – fazem parte do grande contexto dentro do qual nos interrogamos sobre como as pessoas podem encontrar a felicidade e a plenitude da sua vida.

Faz parte desse contexto, de forma totalmente essencial, o modo responsável e gratificante de se relacionar com o dom da sexualidade, dom feito e confiado pelo Criador aos seres humanos. A sexualidade deve fazer sair do beco sem saída e da solidão de um individualismo autorreferencial e levar ao "tu" de outra pessoa e ao "nós" da comunidade humana. O isolamento da sexualidade de tais relações globalmente humanas e a sua redução a sexo não levaram à liberação tão decantada, mas sim à sua banalização e comercialização.

A morte do amor erótico e o envelhecimento da nossa sociedade ocidental são a consequência disso. Matrimônio e família são o último ninho de resistência contra uma economização e tecnicização da vida que tudo calcula friamente e que tudo devora. Temos todas as razões para nos comprometermos o máximo possível pelo matrimônio e pela família, e sobretudo para acompanhar e encorajar os jovens nesse caminho.

Um segundo passo, dentro da Igreja, consiste em uma renovada espiritualidade pastoral, que se despeça de uma estreita consideração legalista e de um rigorismo não cristão, que sobrecarrega as pessoas com pesos insuportáveis, que nós mesmos, clérigos, não queremos carregar e que nem sabemos carregar (cfr. Mt 23, 4).

As Igrejas orientais, com o seu princípio da oikonomia, desenvolveram um percurso para além da alternativa entre rigorismo e laxismo, com o qual nós podemos aprender ecumenicamente. No Ocidente, conhecemos a epiqueia, a justiça aplicada ao caso individual, que, segundo Tomás de Aquino, é a justiça maior.

Na oikonomia, não se trata principalmente de um princípio do direito canônico, mas sim de uma fundamental atitude espiritual e pastoral, que aplica o Evangelho segundo o estilo de um bom pai de família, entendido como oikonómos, segundo o modelo da economia divina da salvação. Deus, na sua economia de salvação, deu muitos passos junto com o seu povo e, no Espírito Santo, percorreu um longo caminho com a Igreja. Analogamente, a Igreja deve acompanhar as pessoas no seu caminhar rumo ao fim da vida e aqui deveria ser consciente de que também nós, como pastores, estamos sempre a caminho e que, muito frequentemente, erramos, devemos começar de novo e – graças à misericórdia de Deus, que nunca tem fim – também podemos sempre recomeçar.

A oikonomia não é um percurso ou mesmo uma saída barata. Ela faz com que se leve a sério o fato de que, como Martinho Lutero formulou justamente na primeira das suas teses sobre a indulgência de 1517, toda a vida do cristão é uma penitência, isto é, uma contínua mudança do modo de pensar e uma nova orientação (metanoia). O fato de que nós muitas vezes esqueçamos isso e imperdoavelmente ignoramos o sacramento da penitência como sacramento da misericórdia é uma das feridas mais profundas do cristianismo atual. A via penitencial (via poenitentialis) não é, por isso, só uma coisa para divorciados em segunda união, mas sim para todos os cristãos. Apenas se, na pastoral, nos orientarmos de novo nesse modo profundo e global é que progrediremos também nas questões concretas que estão à nossa frente, passo a passo.

Um terceiro passo diz respeito à tradução institucional dessas considerações antropológicas espirituais. Tanto o sacramento do matrimônio quanto o sacramento da eucaristia não são apenas um assunto individual privado: eles possuem um caráter comunitário e público, e por isso uma dimensão jurídica. O matrimônio celebrado na igreja deve ser compartilhado por toda a comunidade da Igreja, concretamente da paróquia, e o matrimônio civil está sob a tutela da Constituição e do ordenamento jurídico do Estado.

Considerado desse modo amplo, os procedimentos canônicos em questões matrimoniais precisam de uma reorientação espiritual e pastoral. Já hoje existe um amplo consenso sobre o fato de que procedimentos unilateralmente administrativos e legais, segundo o princípio do tuciorismo, não prestam justiça à salvação e ao bem das pessoas e à sua concreta situação de vida, muitas vezes complexa.

Essa é uma peroração não por uma gestão mais laxista e por uma maior largueza nas declarações de nulidade matrimonial, mas sim, ao contrário, por uma simplificação e aceleração desses procedimentos e sobretudo para situá-los dentro de colóquios pastorais e espirituais, no contexto de uma consultoria de tipo pastoral e espiritual, no espírito do bom pastor e do samaritano misericordioso.

Discute-se de modo controverso sobretudo um quarto passo, em referência a situações em que uma declaração de nulidade do primeiro matrimônio não é possível ou, como ocorre em não poucos casos, não é desejada por ser considerada não honesta.

A Igreja deveria encorajar, acompanhar e sustentar, a partir de todos os pontos de vista, aqueles que, depois de uma separação civil, tomam o difícil caminho de permanecer sozinhos.

Novas normas de Igrejas domésticas podem aqui ser de grande ajuda e dar uma nova possibilidade de sentir-se em casa. O caminho para possibilitar a divorciados que se casaram de novo civilmente, em situações concretas e depois de um período de orientação os sacramentos da penitência e da eucaristia deve ser percorrido em casos singulares com a tolerância e com o tácito consenso do bispo. Essa discrepância entre o ordenamento oficial e a tácita práxis local não é uma boa situação nova.

Embora uma casuística não seja possível nem desejável, critérios vinculantes deveriam valer e ser declarados publicamente. Na minha conferência, tentei fazer isso. Essa tentativa, obviamente, pode ser melhorada. No entanto, a esperança de muitíssimas pessoas é justificada: a esperança de que o próximo Sínodo, guiado pelo Espírito de Deus, depois de ter ponderado todos os pontos de vista, possa indicar um bom e comum caminho.

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