"Erradicar a fome não é uma opção, é uma necessidade imperiosa, se queremos ter um futuro". Entrevista especial com José Esquinas-Alcázar
"A crise alimentar provocou, em 2008, revoltas em mais
de 50 países. Hoje, o aumento nos preços dos alimentos está novamente
contribuindo para a instabilidade política no mundo", afirma o diretor
da Cátedra de Estudos sobre a Fome e a Pobreza - CEHAP da Universidade
de Córdoba, Espanha
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“A
fome e a pobreza são o caldo de cultivo no qual crescem problemas que
tanto preocupam o Ocidente, como a migração ilegal e a violência
internacional. Quando, em consequência da fome e da pobreza, o valor da
vida humana em muitos países pobres é quase desprezível e quando o risco
de embarcar num barco é menor que o de ficar em casa, a decisão está
tomada”, destaca o professor José Esquinas-Alcázar.
“A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos preços de alimentos
poderia levar a um aumento nos conflitos globais. De fato, a crise
alimentar provocou, somente em 2008, revoltas em mais de 50 países e a
consequente queda de vários governos. Hoje, o aumento nos preços dos
alimentos está novamente contribuindo para a instabilidade política em
diferentes partes do mundo”, complementa.
O pesquisador lembra que mesmo o Fórum Econômico Mundial
de Davos incluiu há alguns anos a insegurança alimentar entre os riscos
mais graves à humanidade, pois não afeta mais apenas aqueles que sofrem
diretamente com o flagelo da fome. Por estarmos em um mundo
interconectado pela informação e pela tecnologia, em que o capital e a
divisão do trabalho se organizam em escala global, no qual somos todos
interdependentes um dos outros e dependentes da natureza, a segurança
alimentar se torna um dos principais pilares da paz e da segurança
mundial. “Nossos destinos estão unidos, e o destino é comum: ou nos
salvamos todos ou podemos perecer juntos. O que no passado não soubemos
fazer ou queríamos fazer movidos pela caridade ou pela solidariedade,
hoje teremos que fazer, mesmo que seja por egoísmo inteligente”, frisa
ele na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Jose Esquinas-Alcázar
é doutor em Engenharia Agrônoma pela Universidade Politécnica de Madri,
na Espanha, além de mestre em Horticultura e doutor em Genética pela
Universidade da Califórnia, Estados Unidos. Trabalhou na Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura - FAO por 30 anos,
lidando com temas como recursos genéticos, biodiversidade agrícola,
cooperação internacional, ética na alimentação e agricultura. Atualmente
é diretor da Cátedra de Estudos sobre a Fome e a Pobreza - CEHAP da
Universidade de Córdoba, Espanha. Atua também como professor titular da
Universidade Politécnica de Madri.
O professor José Esquinas-Alcázar fará a conferência de abertura no XV Simpósio Internacional IHU. Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, às 18h30min desta segunda-feira, 05-05-2014. Também presidirá a mesa-redonda Sociobiodiversidade: A riqueza planetária para a Segurança alimentar e nutricional, às 9 horas do dia 06-05-2014.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que ainda morrem 40 mil pessoas por dia no
mundo em consequência da fome? Não produzimos uma quantidade suficiente
para alimentar a população mundial ou é a distribuição de alimentos que é
feita de maneira desequilibrada?
José Esquinas-Alcázar - O que realmente é paradoxal e
indignante é que a fome não é consequência, como acreditam muitos, da
falta de alimentos. Hoje, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura - FAO,
há alimentos no mundo para alimentar folgadamente a população mundial.
Os alimentos estão no mercado internacional, mas não chegam às mesas nem
às bocas dos que têm fome. Em outras palavras, o problema não é a
produção de alimentos, mas o acesso aos mesmos. O problema é,
essencialmente, de índole política. Isto foi reconhecido explicitamente
há mais de 50 anos por um grande presidente dos Estados Unidos. Em 1963,
John F. Kennedy, em seu discurso no primeiro Congresso
Mundial de Alimentos, disse: “Em nossa geração temos os meios e a
capacidade de eliminar a fome da face da Terra. Necessitamos, para
tanto, apenas de vontade política”. Se há 50 anos já existiam os meios e
a capacidade para acabar com a fome, imagine hoje! No entanto, continua
faltando vontade política para isso.
Os dados falam:
No mesmo dia em que morrem de fome 40 mil pessoas, por exemplo, o
mundo gasta quatro bilhões de dólares em armamentos, ou seja, 100 mil
dólares por morto, o que teria permitido alimentar o morto, ao preço dos
alimentos nos países em que morrem, durante mais de 100 anos. Em 1953,
outro grande presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower,
em seu discurso “Oportunidades para a paz”, denunciava: “Cada fuzil
fabricado, cada barco de guerra construído, cada bomba que se joga,
significam, em última instância, um roubo daqueles que têm fome e não
têm comida”.
Observemos também como se encontraram rapidamente fundos ingentes
para que os bancos pudessem fazer frente à atual crise financeira; 2%
dos fundos empregados desde 2010 no mundo, para salvar bancos, teriam
bastado para resolver o problema da fome no mundo.
O orçamento ordinário da FAO, a Organização das
Nações Unidas cujo objetivo principal é acabar com a fome no mundo, para
dois anos é o equivalente ao que dois países desenvolvidos gastam com
comida para cachorros e gatos em uma semana. O orçamento ordinário da FAO de 10 anos é o equivalente ao que o mundo gasta em armamentos em apenas um dia.
Observe a energia, decisão e eficácia com que a humanidade e,
sobretudo, os países desenvolvidos enfrentaram recentemente pandemias
muito menos mortais que a fome, mas contagiosas, como a gripe aviária, a
febre suína ou, mais recentemente, a gripe A. No entanto, o número de
mortos pela gripe A, no mundo, durante estes anos foi da ordem de 17 mil pessoas; menos da metade dos que morrem em um só dia de fome.
Embora seja verdade que a fome não é contagiosa, ela é sumamente
perigosa. A fome constitui uma bomba-relógio, que pode explodir a
qualquer momento e não podemos permitir-nos a miopia política de ignorar
isso.
IHU On-Line - Que estratégias de cooperação e ética podem ser desenvolvidas para eliminar a fome?
José Esquinas-Alcázar - As estratégias aplicadas no
século passado baseadas nas receitas únicas, no produtivismo, no mercado
mundial e na padronização demonstraram sua falta de eficácia.
Permita-me desenvolver alguns pontos para um novo enfoque, baseado na
experiência e na ética:
1) Não existem soluções únicas, nem receitas universais
A situação de cada país, considerando sua história e cultura, suas
condições edafoclimáticas [relacionadas ao clima, relevo, humidade do
ar, tipo de solo, vento e precipitação pluvial] e socioeconômicas, a
evolução da sua população, ou seu grau e tipo de desenvolvimento, são
diferentes e, portanto, diferentes devem ser as soluções para os seus
problemas agrícolas e alimentares.
Tentar impor um único tipo de agricultura é irresponsável e
irrealista, e, além disso, com frequência chegou a situações de não
sustentabilidade ecológica e degradação social. A diversidade de
sistemas agrícolas deve ser protegida e incentivada como um valor
positivo e um importante amortecedor em épocas de mudanças.
2) Reconhecimento do valor dos diferentes usos da agricultura
A agricultura não pode ser considerada como mero
exercício econômico. A agricultura, além de produzir alimentos – ração,
fibras, biocombustíveis, medicamentos e plantas ornamentais –, tem
outras funções essenciais: social, ambiental, de estabilidade cultural,
etc., de difícil contabilidade econômica e que muitas vezes são
consideradas como “externalidades” do sistema. Esta é uma das causas
pelas quais os preços e os “valores” dos produtos agrícolas não
necessariamente se correspondem. Isso constitui também uma importante
dificuldade para avaliar a relação custos/benefícios das atividades
agrárias e da eficácia comparativa entre os diferentes tipos de
agricultura. Faz-se necessário, por isso, introduzir em nosso sistema
econômico os indicadores, correções e elementos necessários para poder
integrar nas análises e avaliações agrícolas todos os custos e
benefícios, incluindo, naturalmente, os não “monetários”.
3) Investimento em agricultura e cooperação internacional
Segundo o Banco Mundial, o
crescimento do setor agrícola elimina ao menos duas vezes mais a pobreza
do que fazem idênticos níveis de crescimento em qualquer outro setor
econômico. É importante, portanto, investir em agricultura para combater
a fome e a marginalização econômica. Não esqueçamos que a agricultura
segue sendo o principal setor produtivo nos últimos anos nos países mais
pobres do mundo, o qual emprega mais de 65% da sua população
economicamente ativa e é responsável, em média, por mais de 25% do
Produto Interno Bruto - PIB.
No entanto, a participação da agricultura na Assistência Oficial ao Desenvolvimento - AOD reduziu-se de 29%, em 1980, para 3% em 2006, e agora se situa em torno de 5%.
A história também nos diz que países como a Índia ou o Vietnã,
que protegeram seu desenvolvimento agrícola dos mercados
internacionais, conseguiram reduções substanciais na pobreza agrícola.
Investir para conseguir a independência de alimentos foi, justamente,
o enfoque que, a partir de 1945, ajudou a Europa do pós-guerra a
conseguir a soberania alimentar em menos de 20 anos. Cada país deveria
dotar-se dos meios para alimentar a si mesmo. Isto significa que é
essencial que a agricultura se converta em uma prioridade internacional e
os países mais pobres sejam ajudados a garantir a segurança e a
independência de seu próprio abastecimento de alimentos.
A FAO considera que, com o objetivo de alcançar o
nível de investimento em agricultura necessário para enfrentar a
situação atual de fome e má nutrição, é necessário que:
a) A parte da AOD destinada à
agricultura chegue aos 44 bilhões de dólares por ano, voltando, assim,
ao nível inicial que permitiu, na década de 1970, evitar a fome na Ásia e
na América Latina;
b) Os gastos orçamentários destinados à agricultura
em países de baixos ingressos e com déficit de alimentos – que,
atualmente, representam cerca de 5% – deveriam ser aumentados para
atingir um mínimo de 10%;
c) O investimento privado nacional e estrangeiro,
próximo, atualmente, dos 140 bilhões de dólares anuais, deveria subir
para 200 bilhões de dólares ao ano.
Estes números podem parecer altos, mas recordemos que os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE proporcionam uma ajuda equivalente a cerca de 365 bilhões de dólares anuais aos seus agricultores.
4) Combater a especulação nos preços agrícolas. Regulação do mercado de alimentos na Bolsa de Valores
Uma série de estudos atribui à especulação até 30% do aumento dos
preços dos cereais no mercado internacional, em 2008. A especulação
exacerbada pelas medidas de liberalização dos mercados de futuros de
produtos agrícolas em um contexto de crise econômica e financeira
permitiu a transformação dos instrumentos de arbitragem do risco em
produtos financeiros especulativos que substituem outros investimentos
menos rentáveis.
Este problema exige soluções éticas e urgentes, entre as quais deve-se considerar a possibilidade de tirar os alimentos da Bolsa de Valores.
Também com o objetivo de reduzir a especulação, é importante evitar os
monopólios e monitorar as grandes cadeias de alimentação. Para reduzir a
volatilidade dos preços e enfrentar a especulação nos mercados de
futuros de produtos agrícolas, pode contribuir a introdução de novas
medidas de transparência e regulamentação que permitam aos poderes
públicos influir nos preços dos alimentos básicos. Assim como aumentar o
armazenamento de produtos agrícolas e alimentares e sua liberação na
medida em que os preços disparem.
5) Biocombustíveis
Atualmente, as subvenções e proteções alfandegárias a
favor dos biocombustíveis têm o efeito de desviar cerca de 120 milhões
de toneladas de cereais do consumo humano para o setor dos transportes.
Para reduzir esse impacto, é importante e urgente regular e desacelerar,
ao menos temporariamente, a produção de biocombustíveis, especialmente
aqueles de primeira geração.
6) Reduzir a distância das cadeias alimentares com a finalidade de reduzir custos energéticos e econômicos
Para isso, pode contribuir a aproximação entre os centros de produção
e de consumo, promovendo o aumento da produção local e o consumo de
produtos locais e estacionais.
IHU On-Line - Em entrevista ao jornalista Gumersindo
Lafuente, publicada pelo jornal El País em junho de 2011, disseste que
“a caridade deve ser substituída pelo egoísmo inteligente”. De que forma
esta declaração está relacionada com a preservação da Terra?
José Esquinas-Alcázar - A fome e a pobreza são o
caldo de cultivo no qual crescem problemas que tanto preocupam o
Ocidente, como a migração ilegal e a violência internacional. Quando, em
consequência da fome e da pobreza, o valor da vida humana em muitos
países pobres é quase desprezível e quando o risco de embarcar num barco
é menor que o de ficar em casa, a decisão está tomada.
A FAO anunciou, em 2007, que o aumento dos preços de
alimentos poderia levar a um aumento nos conflitos globais. De fato, a
crise alimentar provocou, somente em 2008, revoltas em
mais de 50 países e a consequente queda de vários governos. Hoje, o
aumento nos preços dos alimentos está novamente contribuindo para a
instabilidade política em diferentes partes do mundo, incluindo o Meio
Leste. Em 2009, o relatório do Fórum Econômico Mundial de Davos incluiu pela primeira vez a insegurança alimentar como um risco importante para a humanidade.
Num mundo tão inter-relacionado e interdependente como o atual, a
fome passou de flagelo para os que a sofrem a um perigo para toda a
humanidade. Sem segurança alimentar não há, nem poderá haver nunca, paz,
nem segurança mundial.
Atualmente, no século XXI, erradicar a fome em nossa pequena Aldeia
Global não é uma opção, é uma necessidade imperiosa, se queremos ter um
futuro. Estamos em uma pequena astronave, a aeronave Terra. Estamos aí,
literalmente, dando voltas, com recursos limitados e perecíveis; com uma
interdependência cada vez maior. Se vier a acontecer que essa astronave
ou essa nave ou esse barco sofra um buraco, tanto faz se o buraco se
deu na Índia, na África, no Brasil, nos Estados Unidos ou na Espanha;
todos afundaremos. Nossos destinos estão unidos, o destino é comum: ou
nos salvamos todos ou podemos perecer juntos. O que no passado não
soubemos fazer ou queríamos fazer movidos pela caridade ou pela
solidariedade, hoje teremos que fazer, mesmo que seja por egoísmo
inteligente.
IHU On-Line - Como filho de agricultores, que importância concede às pequenas propriedades camponesas na luta contra a fome?
José Esquinas-Alcázar - Não foi por acaso que este ano de 2014 tenha sido declarado pela ONU como o Ano Internacional da Agricultura Familiar.
A maior parte dos alimentos que consumimos no mundo procede da
agricultura familiar, que é, em geral, uma agricultura baseada em
pequenas propriedades.
Como dissemos anteriormente, existem hoje alimentos mais que
suficientes para alimentar a humanidade; entretanto, os famintos não têm
acesso aos mesmos. Os alimentos estão disponíveis no mercado
internacional, mas isso não é suficiente para que cheguem aos que passam
fome, especialmente em tempos de carestia alimentar e grande
volatilidade dos preços dos alimentos, já que a fome e a pobreza andam
muitas vezes de mãos dadas. A falta de acesso deve-se à escassez de
alimentos produzidos em nível local, por um lado, e à falta de recursos
para comprar os alimentos procedentes de onde há excedentes, por outro.
Os sistemas tradicionais de luta contra a fome, através dos programas de
distribuição de alimentos e assistência humanitária, proporcionam
alimentos ou fundos para obtê-los no mercado internacional. No entanto, a
eficácia destas medidas tem sido muito limitada por tratar-se de
soluções a curto prazo.
Se levarmos em conta que a maior parte (70%) da população faminta
vive em zonas rurais, promover a produção in situ parece ser a solução
mais eficiente e talvez a única duradoura. Requerem-se melhorias na
produção em nível local para proporcionar um aumento das opções para os
agricultores de pequena escala e as comunidades rurais, e para melhorar a
qualidade, assim como a quantidade, dos alimentos disponíveis. Isso
significa apoiar os pequenos agricultores e suas comunidades no
desenvolvimento e melhoria dos seus próprios sistemas agrícolas.
Infelizmente, a assistência técnica ao pequeno agricultor e a pesquisa
internacional para melhorar a produção nos sistemas agrícolas
tradicionais de baixos insumos, incluindo a melhoria genética dos
cultivos marginais e variedades locais adaptados a estes sistemas, foram
muito escassas e, muitas vezes, inexistentes.
Sistemas agrícolas tradicionais
A FAO, no seu relatório “Os caminhos para o êxito”
(nov. 2009) , assinala que uma das melhores e mais rentáveis vias para
sair da pobreza e da fome no meio rural é apoiar os pequenos camponeses.
Cerca de 85% das propriedades agrícolas no mundo têm menos de dois
hectares, e os pequenos agricultores e suas famílias representam cerca
de dois bilhões de pessoas, um terço da população mundial.
Além disso, os pequenos agricultores são a base da soberania
alimentar e esta deve ser considerada parte essencial da segurança
alimentar. Para não criar-se uma dependência dos preços agrícolas
internacionais, não se pode fomentar sistematicamente o desmantelamento
dos sistemas agrícolas tradicionais. Com frequência, é preciso apoiar
seu desenvolvimento e uma evolução paulatina que permita aumentar sua
produtividade e sua capacidade de se adaptar às necessidades cambiantes
do meio e à sociedade nas quais se desenvolverão.
Na sequência, damos um exemplo ilustrativo das consequências do desmantelamento dos sistemas agrícolas tradicionais:
Em Benin, o desenvolvimento de grandes cultivos de
algodão para satisfazer a demanda do Ocidente levou ao deslocamento de
milhões de pequenos agricultores produtores de alimentos, que venderam
suas terras para passar a ser diaristas, muitos deles nas novas
plantações de algodão. Isto, no entanto, não foi percebido como um
problema, já que as diárias recebidas lhes permitiram comprar alimentos
procedentes do mercado internacional a bom preço e, por isso, muitas
vezes em maior quantidade que aqueles que produziam antes em suas
pequenas propriedades. No entanto, o aumento dos preços internacionais
dos alimentos nos últimos anos deixou-os numa situação de indigência e
fome sem precedentes. Agora, já não podem voltar à sua agricultura
tradicional, já que, com a venda das suas terras, criaram uma situação
de dependência praticamente irreversível .
Muitas vezes, os processos desencadeados com a venda das terras e o
desmantelamento dos sistemas agrícolas nacionais passam a ser
irreversíveis. Ao perder a capacidade de produzir seus alimentos, os
países podem hipotecar sua própria soberania.
IHU On-Line - Em que etapa estão os debates no Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas acerca de uma possível Declaração
Universal Sobre os Direitos dos Camponeses?
José Esquinas-Alcázar - Em outubro de 2012, o Conselho de Direitos Humanos da ONU
decidiu criar um grupo de trabalho intergovernamental de composição
aberta encarregado de negociar, finalizar e apresentar ao Conselho de
Direitos Humanos um projeto de declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas zonas
rurais.
O grupo de trabalho intergovernamental, presidido pela embaixadora da
Bolívia na ONU, em Genebra, em sua primeira reunião, em julho de 2013,
considerou um primeiro rascunho da declaração e fez comentários sobre o
mesmo. Atualmente, o rascunho está sendo modificado em consulta com os
países, com o objetivo de apresentar um novo rascunho na segunda reunião
negociadora do grupo de trabalho, prevista para novembro de 2014.
IHU On-Line - Qual é o impacto do capital internacional sobre
a biodiversidade agrícola e os recursos genéticos? Por que os dois
últimos são importantes?
José Esquinas-Alcázar - O capital internacional e as
grandes companhias de produção de sementes estão promovendo um tipo de
agricultura industrial baseada na uniformidade, onde um pequeno grupo de
variedades vegetais e raças animais uniformes e homogêneos estão
substituindo em todo o mundo uma enorme diversidade de espécies
alimentares. Alguns acordos internacionais com o comércio, certificação
de sementes e direitos de propriedade intelectual, assim como a própria
legislação nacional de muitos países, estão contribuindo para este
desatino.
A Diversidade Biológica Agrícola (DBA) e mais concretamente os Recursos Genéticos para a Agricultura e a Alimentação (RGAA),
também conhecidos com “ouro verde”, constituem a despensa da
humanidade, a matéria-prima sobre a qual se baseia o desenvolvimento
agrícola e a produção de alimentos. Sem o uso da diversidade genética
existente dentro de cada espécie animal ou vegetal, não seria possível o
combate das pragas e doenças das plantas cultivadas e dos animais de
granja, o aumento da sua produtividade, sua adaptação a condições
adversas do ambiente (por exemplo, excessivo frio ou calor, seca ou
umidade), nem a melhoria das suas características nutritivas, e se
perderia a capacidade destas espécies de se adaptar às mudanças
climáticas. Quando se perde a DBA de uma espécie agrícola, priva-se a
espécie da sua capacidade de evolução e adaptação ao ambiente, e o ser
humano do material básico onde selecionar o material desejado; as
consequências podem ser catastróficas.
Um exemplo conhecido e sumamente ilustrativo é a fome que estremeceu a
Europa na metade do século XIX e que provocou a morte por fome de
milhões de pessoas. O que muitos ignoram é que a sua causa foi a
destruição em massa dos cultivos de batatas europeias, atacadas por um
fungo, o Phytophtorainfestans, para o qual não se
encontrava resistência devido à uniformidade extrema das batatas
cultivadas no continente. O problema foi resolvido graças à resistência à
doença encontrada no Peru, centro de origem e diversidade da batata.
Outro exemplo mais recente é o do ataque do Helmintosporiusmaydes,
que destruiu os milhos comerciais uniformes do sul dos Estados Unidos
no começo da década de 1970. O problema foi resolvido graças aos genes
de resistência encontrados nas variedades heterogêneas de milhos
africanos.
O número de casos, embora nem sempre tão trágicos, se multiplicou
durante os últimos anos em muitos cultivos, e a solução passou quase
sempre pela identificação de resistência às doenças e às condições
adversas entre as variedades heterogêneas tradicionais que seguem sendo
cultivadas pelos pequenos agricultores, sobretudo nos países em
desenvolvimento. Uma vez identificada esta resistência, os cientistas
podem incorporá-la às variedades comerciais através de cruzamentos.
Recursos genéticos
Ao longo do último século, houve uma enorme perda de
diversidade genética dentro das chamadas “principais espécies
alimentícias”. Centenas de milhares de variedades heterogêneas de
plantas cultivadas ao longo de gerações foram substituídas por um
reduzido número de variedades comerciais modernas e enormemente
uniformes.
Só nos Estados Unidos já desapareceram mais de 90%
das árvores frutíferas e espécies hortícolas que ainda se cultivavam no
começo do século XX, e tão somente algumas poucas são conservadas em
bancos de genes. No México, só se conhecem, atualmente, 20% das variedades documentadas em 1920. Na República da Coreia,
apenas 26% das variedades locais cultivadas em hortas e pomares
familiares em 1985 continuavam sendo utilizadas em 1993. Em geral,
pode-se dizer que, em nível mundial, entre 80% e 95% das variedades
conhecidas para os cultivos mais importantes no início do século XX se
perderam para sempre.
Além disso, em nível de espécie estamos ignorando e desaproveitando a
maior parte da diversidade biológica agrícola existente. Segundo a FAO,
estima-se que, ao longo da história da humanidade, foram utilizadas
cerca de 10 mil espécies para a alimentação humana e a agricultura.
Atualmente, não mais de 120 espécies cultivadas de plantas nos
proporcionam 90% da alimentação calórica humana, e tão somente quatro
espécies vegetais (batata, arroz, milho e trigo) e três espécies animais
(gado, suíno e frango) nos proporcionam mais da metade.
As sistemáticas ações internacionais para frear a perda de recursos
genéticos e assegurar a cooperação internacional nesta matéria começaram
na FAO nos anos 1970. Em 1983, a Conferência da FAO criou a Comissão Intergovernamental de Recursos Genéticos para a Agricultura e a Alimentação - CRGAA.
Atualmente, a comissão conta com 170 países membros e é o fórum
intergovernamental permanente para a discussão e negociação das questões
relacionadas aos RGAA. Nesta comissão, foi negociado nos anos 1990 e
aprovado em 2001 o Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos para a
Agricultura e a Alimentação, acordo que, até o momento, foi ratificado
pelos parlamentares de 136 países.
IHU On-Line – Nesta perspectiva, comente, por favor, o
episódio no qual um camponês lhe cedeu um punhado de sementes de melões
que, mais tarde descobriu-se, eram resistentes ao fungo que ameaçava as
demais espécies do fruto no mundo. O que estes episódios nos ensinam?
José Esquinas-Alcázar - A diversidade genética que
permitiu salvar a batata na Europa no século XIX e o milho nos Estados
Unidos no século XX não estava ali por acaso. Era o produto da seleção
realizada por milhares de gerações de pequenos agricultores
tradicionais; eles seguem sendo ainda hoje, no mundo que muitas vezes os
ignora e às vezes os vê como uma carga social devotada ao passado, os
autênticos guardiões da maior parte da diversidade biológica agrícola
com que ainda podemos contar; aqueles que continuam desenvolvendo,
conservando e colocando à disposição de outros agricultores, dos
aperfeiçoadores profissionais e, inclusive, dos modernos biotecnólogos, a
matéria-prima necessária para enfrentar condições ambientais cambiantes
e necessidades humanas imprevisíveis. São estes simples camponeses os
que seguem tendo as chaves do futuro alimentar da humanidade.
Ilustrarei isso com o exemplo dos melões e outros casos significativos:
Em julho de 1970, nas Hurdens, no coração da Espanha
rural, um agricultor ancião, que seguia com seu asno, encontrou-se com
um jovem estudante que recolhia sementes de melão. O velho agricultor
perguntou ao jovem estudante o que estava fazendo, e o rapaz lhe
explicou que queria coletar os melões autóctones da Espanha
antes que desaparecessem. “Vem ver meus melões – disse o agricultor.
Nunca ficam doentes”. O estudante acompanhou o idoso até sua
propriedade. O velho agricultor deu-lhe algumas sementes, que o jovem
levou para fazer análises em laboratório. As sementes continham um gene
resistente a um fungo do melão, que posteriormente foi transferido para
outros melões, beneficiando os agricultores de todo o mundo. Eu era esse
jovem estudante, mas não sei quem era o ancião. É como tantos milhões
de homens e mulheres. Ninguém lhes agradece, mas eles são os possuidores
da sabedoria capaz de produzir e conservar suas sementes e suas
tradições para as futuras gerações.
O tempo e a experiência me mostraram que não se tratava de um caso isolado. Em 1983, coletando quinoa, um dos cultivos mais importantes da agricultura tradicional andina, na Bolívia, encontramos na granja de um agricultor, em uma zona onde predomina a quinoa amarela, um tipo de quinoa escura,
cujas plantas tinham um aspecto doentio e cuja produtividade parecia
muito baixa. Comentamos com este agricultor que estas plantas estavam
doentes e talvez por isso produzissem pouco grão e de cor escura. Ele
nos respondeu que não, que “esta variedade é assim”. Embora não tenhamos
ficado muito convencidos, a cena se repetiu nos campos de outros
agricultores vizinhos. O último nos confirmou que “esta variedade
produzia muito pouco”. E quando lhe perguntamos por que a cultivava
mesmo assim, ele respondeu que era muito boa para curar a tuberculose.
Não demos muito crédito ao comentário, mas coletamos algumas amostras
que foram enviadas com as outras a alguns laboratórios para análise.
Quando, alguns meses depois, obtivemos os resultados das análises,
soubemos que aquela quinoa negra, supostamente doente,
tinha um conteúdo em proteínas e, sobretudo, em aminoácidos essenciais
muito superiores às outras quinoas cultivadas na zona.
O número de exemplos é infindável. Uma variedade local de trigo coletada na Turquia pelo Dr. Harlan
em 1948 no campo de um pequeno agricultor, e ignorada depois durante
muitos anos, foi uma fonte de resistência a fungos em todo o mundo.
Algumas variedades tradicionais de alfafa encontradas no Irã permitiram
introduzir resistência a nematoides em muitas variedades comerciais de
outros países. Uma variedade de trigo encontrada em zonas remotas do Japão,
em 1946, passou a ser a base da chamada “revolução verde” em todo o
mundo um quarto de século depois, graças aos seus genes de nanismo que
permitiram maiores doses de adubo nitrogenado. Uma raça tradicional de
suínos chinesa permitiu aumentar a fertilidade de muitas raças
europeias. A resistência à malária nas vacas do sul dos Estados Unidos procede de uma raça local do norte de Roma.
O trabalho essencial dos agricultores tradicionais no
desenvolvimento, conservação e disponibilidade da diversidade biológica
agrícola foi formalmente reconhecido pelo Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos da FAO,
cujo artigo 9, “Direitos do Agricultor”, define os agricultores como
guardiões dos recursos genéticos e lhes assinala direitos.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo mais?
José Esquinas-Alcázar - Sim, creio que a questão da
fome e da conservação dos recursos naturais da Terra não pode ser
tratada de maneira isolada. É preciso integrar a crise alimentar ao
contexto das demais facetas da crise global em que nos encontramos
imersos e cujo combate só é possível associando-a ao desenvolvimento de
um mundo melhor, solidário e sustentável, onde o objetivo não seja
simplesmente “o crescimento econômico”, mas “a felicidade”, e onde o
motor do processo não seja o “consumo” e a “sobre-exploração” dos
recursos naturais, mas a relação harmônica entre e com todos os
componentes do ecossistema Terra. Um mundo no qual o crescimento
material não seja sinônimo de desenvolvimento e onde a ciência, as
tecnologias, o mercado e, inclusive, a democracia, não sejam deuses
infalíveis que devemos glorificar, mas meros instrumentos que podem nos
ajudar a transformar a nossa casa, a Terra, em um Paraíso.
(Por Luciano Gallas / Tradução: André Langer)
Veja também:
- A desnutrição invisibilizada. "No Norte, a má nutrição atinge até 40% das crianças indígenas". Entrevista especial com Maria Emília Lisboa Pacheco
- Um sistema alimentar que produz famintos e obesos. Entrevista especial com Esther Vivas
- FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/530952-eliminar-a-fome-requer-inteligencia-e-etica-entrevista-especial-com-jose-esquinas-alcaza
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