O cenário brasileiro
“Creio que vivemos em um momento de reaquecimento da política,
que volta às ruas, se desencastelando dos espaços institucionais”, afirma a
advogada.
Quarta, 08 de janeiro de 2014
Entrevista Especial com Luana Xavier Pinto Coelho
Há sete meses da realização do mundial de futebol no Brasil, as manifestações de rua que marcaram
o outono quente no país parecem ter dado uma trégua ao fim do ano.
Entretanto, a julgar pela remobilização massiva dos movimentos sociais, o
próximo ano tende a ser novamente palco de manifestações, ainda mais
considerando que 2014 será um ano de eleições presidenciais. “A reação de
governos/partidos a possíveis manifestações e atos públicos terá relação direta
com a possibilidade de terem ganhos político-eleitorais. Haverá, portanto, mais
uma vez, a disputa por sentido das lutas das ruas, no caso de se reproduzir
novamente o levante popular de junho de 2013. Neste cenário, contudo, é difícil
prever como será o ano de 2014”, avalia Luana Xavier Pinto
Coelho, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, em
entrevista por e-mail à IHU On-Line.
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Na opinião de Luana, a realização da Copa do Mundo está garantida,
haja vista o investimento do governo para a realização do evento. “O saldo
negativo que poderemos esperar neste caso é que os governos vão querer garantir
que a Copa ocorra de qualquer forma, sendo que isso significa uma violenta e
truculenta repressão policial, monitoramento de movimentos e redes sociais,
ações de terrorismo de Estado somente vistos no período da ditadura militar
brasileira, para evitar as grandes manifestações”, sustenta.
Luana Xavier Pinto Coelho,
advogada, especialista em Direito Constitucional e mestre
em Cooperação Internacional e Desenvolvimento
Urbano pela Technische Universität
Darmstadt (Alemanha). É assessora jurídica da ONG Terra de
Direitos no programa “Direito à Cidade”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o cenário político-social brasileiro há cerca de sete meses da realização da Copa do Mundo no país?
Luana Xavier Pinto Coelho - O cenário atual é dos mais
complicados possíveis. Creio que há tempos o país não vive um cenário tão
difícil de compreender e também de contrapor. Viveremos no próximo ano um
megaevento internacional, que chamará a atenção de todo o mundo para o país, o
que coloca a oportunidade de expor governos e corporações, por suas atuações
violadoras de direitos humanos. Por outro lado, neste mesmo ano teremos eleições
presidenciais, de governos dos estados e parlamentos federais e estaduais. Ter
uma Copa do Mundo no Brasil em ano de eleições torna o cenário
político-social mais complexo de ser analisado, uma vez que os diferentes
coletivos vão, certamente, pautar suas atuações também visando consequências
eleitorais.
Não se pode ignorar, ainda, neste contexto, o reflexo das jornadas de junho nos
diversos coletivos e movimentos populares, que voltaram a acreditar nas ruas, na
resistência e no enfretamento como forma de luta por direitos. Creio que vivemos
em um momento de reaquecimento da política, que volta às ruas, se
desencastelando dos espaços institucionais.
Da mesma forma, a reação de governos/partidos a possíveis manifestações e
atos públicos terá relação direta com a possibilidade de terem ganhos
político-eleitorais. Haverá, portanto, mais uma vez, a disputa por sentido das
lutas das ruas, no caso de se reproduzir novamente o levante popular de junho de
2013. Neste cenário, contudo, é difícil prever como será o ano de 2014.
IHU On-Line – Qual o papel dos Comitês Populares da Copa no atual
contexto?
Luana Xavier Pinto Coelho - Os Comitês Populares tiveram um
trabalho central na sistematização e difusão de informação sobre as violações de
direitos que vêm ocorrendo nas cidades sede com o lançamento de dossiês. Da
mesma forma, os comitês auxiliaram a dar visibilidade à luta de comunidades
atingidas, pois como uma articulação formada por diferentes sujeitos e
coletivos, impulsionou um movimento que fortaleceu as reivindicações neste
período.
Acho que os comitês irão continuar com os processos de denúncias e nos
processos de resistência dos atingidos, em especial com a crítica contundente
à Fifa como uma corporação e ao modelo privatista e elitista de
copa do mundo imposto por ela.
Contudo, a reflexão sobre a Copa do Mundo e seus impactos
negativos no país já não é privilégio dos Comitês Populares da Copa, inúmeros
coletivos, grupos, movimentos e indivíduos já estão se posicionando criticamente
a este megaevento, inclusive prevendo manifestações e protestos com agendas
próprias.
IHU On-Line – Pode-se considerar que a Copa do Mundo no Brasil está
ameaçada? Por quê?
Luana Xavier Pinto Coelho – Acho difícil. Foi um
investimento muito grande dos governos, de grandes corporações e da Fifa para
realizar este megaevento, portanto creio ser muito difícil impedir. Além disso,
o futebol é um esporte popular, e o mundo inteiro espera por este evento. O
saldo negativo que poderemos esperar neste caso é que os governos vão querer
garantir que a Copa ocorra de qualquer forma, sendo que isso
significa uma violenta e truculenta repressão policial, monitoramento de
movimentos e redes sociais, ações de terrorismo de Estado somente vistos no
período da ditadura militar brasileira, para evitar as grandes manifestações. É
lastimável que uma democracia popular como a nossa, em um momento como este,
mostre sua face mais autoritária e truculenta para garantir lucros de
capitalistas privados.
IHU On-Line – Como podemos entender a relação entre a União e a Fifa?
Que tipos de ações do Estado são ilustrativos dessa comunhão de
interesses?
Luana Xavier Pinto Coelho – O Estado Brasileiro aceitou, sem
maior resistência, todas as imposições da Fifa, inclusive
aquelas que são contrárias à legislação nacional e à Constituição, numa afronta
à soberania do país. Para citar algumas: a zona de exclusão imposta
pela Fifa é inconstitucional, primeiramente porque é princípio
constitucional a livre iniciativa, ou seja, o Estado não pode aceitar – quanto
menos impor – regimes de monopólio; da mesma forma é inconstitucional e viola
direitos humanos a restrição de acesso de parte da população a espaços públicos,
que são as ruas, praças e demais equipamentos públicos presentes no raio da zona
de exclusão; o financiamento público de um evento privado sem contrapartida
também é ilegal e constitui improbidade administrativa – nos discursos iniciais
o governo dizia que não haveria recursos públicos investidos na Copa do
Mundo e agora, após alguns anos, os números são chocantes. Para piorar,
o modelo imposto pela Fifa de transformação dos estádios de
futebol em “arenas multiuso” faz uma distorção absurda: dinheiro público vai
para a reforma dos estádios que são, em seguida, passados à administração de
concessionárias privadas por períodos de 30 a 40 anos, sem que haja nenhuma
contrapartida por parte delas, ficando o legado para o povo da elitização e
privatização dos equipamentos de esporte nacionais. Uma pesquisa
do Instituto Mais democracia já demonstrou “quem são os
donos do Brasil” – por trás de todas as obras
da Copa estão majoritariamente quatro construtoras, e os
interesses destas e o interesse do Estado já são algo em que não há qualquer
dissociação. Vivemos, como diz Raquel Rolnik, em um
neoliberalismo de Estado.
IHU On-Line – Quais são os principais avanços que as competições
internacionais trarão ao Estado brasileiro e quais são os principais limites?
Haverá legado? Qual?
Luana Xavier Pinto Coelho – Não consigo ver avanços para o
Estado Brasileiro decorrentes das competições internacionais. Penso que o legado
da Copa já está traçado: sobre-endividamento de estados e
municípios, perda da democracia, criminalização de movimentos sociais,
terrorismo de Estado, privatização de espaços públicos e equipamentos de lazer,
elitização do futebol, higienização das cidades, remoções forçadas, e a lista
continua longa e desastrosa. O legado anunciado de obras de infraestrutura e a
possibilidade de atração de investimentos já têm se provado uma grande falácia.
A maioria das obras de infraestrutura de mobilidade, que poderiam beneficiar as
cidades, foram retiradas das matrizes de responsabilidade, ficando aquelas obras
que se direcionam mais a infraestrutura de esporte (ligar aeroportos e
rodoviárias aos estádios de futebol). Inúmeros estudos já apontam que não há
atração de investimentos com o megaevento, muito menos aquele que conseguirá
pagar a conta que ficará para os municípios (considerando a exceção alarmante de
endividamento de municípios a 50%).
IHU On-Line – Nas últimas três semanas, quatro trabalhadores
morreram (dois em São Paulo, na Arena Corinthians, e dois em Manaus, na
Arena Amazônia) nas obras dos estádios da Copa, sem contar outras violações
trabalhistas. Em que medida isso macula a imagem dos jogos perante a população
em geral?
Luana Xavier Pinto Coelho – O ritmo de trabalho imposto aos
trabalhadores e as condições deste são desumanas. Alguns dos trabalhadores que
faleceram estavam em jornadas de trabalho ilegais e sem descanso semanal.
Infelizmente a forma como tais eventos são veiculados na grande mídia não
permite uma reflexão aprofundada entre as tragédias e as imposições
da Fifa para o país. Penso que há pouca reflexão entre as
fatalidades e uma possibilidade de pensar criticamente a Copa do
Mundo no país.
IHU On-Line – Circula na Internet um vídeo que denuncia uma suposta
fraude no sorteio dos grupos da Copa do Mundo, que ilustra certo desgaste da
imagem da Fifa. Essa desconfiança seria reflexo de uma visão mais crítica da
população em relação ao mundial?
Luana Xavier Pinto Coelho – A mensagem que veicula no vídeo
reflete uma crítica que sempre permeia os campeonatos esportivos acerca da
desconfiança dos descontentes com resultados dos campeonatos com a compra de
jogadores, lobby dos grandes clubes/países. Mas não sei até que
ponto esta desconfiança à credibilidade da Fifa enquanto organizadora dos jogos
permite uma reflexão mais ampla sobre a entidade como uma corporação que usa o
megaevento para obtenção de lucro para si e para seus patrocinadores e como
violadora de direitos humanos. Creio que toda crítica neste momento é positiva,
ajuda a manchar a imagem
da Fifa, e temos que acreditar que nossa população irá
compreender a dimensão dos impactos negativos que ficarão de “legado” para o
país.
IHU On-Line – Como avalia a indicação da Fifa para a pior empresa do
mundo, conforme votação aberta na Internet?
Luana Xavier Pinto Coelho - A Fifa se apresenta como uma
fundação, sem fins lucrativos, mas os números têm mostrado que seus lucros nas
últimas copas ultrapassam a casa de um bilhão de reais. Penso que a simples
aceitação da Fifa pela Public Eye já foi uma vitória, em trazer a imagem da Fifa
como uma corporação. A entidade também sempre tenta se esquivar das denúncias de
violações de direitos humanos relacionadas às obras da Copa, dizendo que seria
responsabilidade do Governo a forma como o megaevento é preparado. A nomeação da
Fifa, mais uma vez, relaciona todas as violações diretamente a esta corporação,
que se alia aos governos, usa o apelo popular ao futebol, para promover gastos
exorbitantes, favorecer seu pequeno grupo de patrocinadores e garantir seu
bilhão em lucro.
IHU On-Line – Na sua opinião, o clima de ufanismo em relação à Copa
do Mundo arrefeceu porque estamos relativamente longe da realização dos jogos ou
por conta de uma posição mais crítica da sociedade?
Luana Xavier Pinto Coelho - Creio que as mobilizações de
junho foram fundamentais para disseminar esta reflexão mais crítica acerca dos
jogos da Copa do Mundo. Com as multidões na rua, trazendo
inclusive críticas à Copa da Fifa, não havia como a mídia
ignorar. Contudo, penso que o apelo ufanista, a produção de propaganda neste
sentido será intensificada no momento próximo aos jogos. Será difícil prever
como será a reação das pessoas em junho e julho, quando a mídia certamente
intensificará a abordagem de festa e celebração, assim como foi sentida no dia
da transmissão do sorteio das chaves.
IHU On-Line – Qual a perspectiva para os próximos meses?
Luana Xavier Pinto Coelho - Creio que os próximos meses
exigirão dos movimentos populares, dos comitês e demais coletivos uma atuação
direta e efetiva na produção de contrainformação. Mais do que nunca será preciso
fazer o contraponto entre o “país da festa e do futebol” e as violações de
direitos pela Fifa. Assim, a perspectiva é que se intensifiquem
as campanhas que divulguem todas as atrocidades cometidas para preparar este
megaevento.
Por outro lado, o Estado também se prepara e, neste sentido, podemos também
esperar uma atuação cada vez mais violenta e arbitrária das polícias e governos
estaduais (secretarias de segurança pública), que irá demandar uma atuação
coordenada de diversos atores para, mais uma vez, denunciar a perigosa perda da
democracia e liberdade dos brasileiros. Exemplo disso é o andamento adiantado
no Congresso Nacional da discussão de tornar o “terrorismo” um
crime.
Isto seria a morte da liberdade de expressão e manifestação no Brasil, como
um dos mais tristes e indefensáveis legados da Copa do
Mundo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Luana Xavier Pinto Coelho - É importante acrescentar que o
modelo de cidade que se descortina com as obras e prioridades
da Copa do Mundo não nasce com a Fifa ou
com o megaevento no Brasil, é um modelo que já vinha se instalando nas cidades
brasileiras, um modelo de produção capitalista do espaço, que somente se
intensifica, se exponencializa, com a vinda de um megaevento que traz grandes
oportunidades para os empreendedores imobiliários e para as grandes
construtoras. Mas não podemos esquecer que os megaprojetos já estão em curso no
país antes da Copa e continuarão para além dela, nos obrigando
a fazer um esforço conjunto em repensar que modelo de cidade queremos e se
permitiremos o abandono completo do modelo de cidade democrático e igualitário
delineado no Estatuto da Cidade.
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