A irracionalidade idolátrica do mundo: a novidade do “Alegria do Evangelho”
Jung Mo Sung - Adital
Há no documento “Alegria do Evangelho” (especialmente nos n.
50 a 62), do papa Francisco, uma novidade teórica que não está
sendo muito comentada (pelo menos no que pude acompanhar) que penso ser
fundamental para uma nova compreensão do mundo em que vivemos e da missão do
cristianismo hoje. Por isso, quero, após uma longa ausência aqui no
Adital, comprometer-me a escrever uma pequena série de artigos sobre
isso.
O papa inicia o segundo capítulo do documento dizendo que,
antes de falar sobre algumas questões fundamentais da evangelização,
convém falar do mundo em que vivemos e agimos (n. 50). Essa
postura nos lembra o método “ver-julgar-agir”; porém é mais do
que um simples “ver” a realidade para depois “julgar” se essa está de acordo ou
não com o “projeto de Deus”, e depois “agir” ou planejar a ação.
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Isto é, a forma como o documento articula a visão da realidade e a
evangelização não é linear – uma sequência que vai do primeiro passo
para o segundo e depois o terceiro –, pois o próprio momento do “ver”
não é autônomo e neutro (como pretende as ciências modernas) e anterior
ao julgar, mas está influenciado pelo “julgar”. O papa diz que uma visão
sociológica da realidade, com pretensão de neutralidade ética, não serve para
quem está preocupada com a missão de evangelização (e nem para quem
busca profundas transformações sociais), por isso é preciso fazer um
diagnóstico da realidade social hoje na linha de “discernimento
evangélico”.
Após a explicitação do seu “método”, o papa aponta a exclusão social e a
enorme desigualdade social (que está preocupando até a elite capitalista
mundial, como o Fórum Econômico Mundial de Davos) como
os grandes desafios do mundo de hoje e propõe uma chave de leitura para
explicar essa situação.
A principal causa não é, como dizem os pensadores neoliberais, a falta da
liberdade do mercado ou da eficiência econômica, mas sim a “idolatria do
dinheiro”, que leva à absolutização das leis do mercado em detrimento da vida
humana.
É preciso destacar aqui que o tema da exclusão social e
excessiva desigualdade econômico-social no mundo não aparece em um
documento do “Ensino/Doutrina Social da Igreja” – como era costume –,
mas sim em um documento que tem como tema central a
evangelização.
Nas últimas décadas e mesmo séculos, toda vez que a
Igreja tratava do tema da evangelização, o “adversário” era o ateísmo,
racionalismo e o secularismo do mundo moderno. Por isso, temos tantos
trabalhos teológicos para justificar a fé diante da razão e da ciência. Se
compreendemos que a missão de evangelização se dá em um mundo racionalista e
ateu, a principal tarefa é anunciar que Deus existe, e, em seguida, que Deus se
encarnou em Jesus. E para isso é preciso justificar e defender a fé e a
religião diante do secularismo (que é distinto da secularização –um
tema que não é possível abordar aqui).
Se olharmos com cuidado, podemos perceber que a grande maioria das
obras teológicas “progressistas” europeia assumem como verdade o discurso
moderno de que o mundo moderno capitalista é baseado na razão e procuram
justificar e explicar a fé cristã em diálogo com a razão e ciências
modernas.
Quando o papa diz que o mundo atual não é ateu, centrado na razão,
mas é fundado na “idolatria do dinheiro” – um tema bastante
desenvolvido pela TL, especialmente “Escola Dei” (Franz Hinkelammert,
Hugo Assmann, E. Dussel e outros) – o tema econômico se desloca para o
centro da discussão teológica sobre a missão de evangelização; e, mais do que
isso, afirma que o mundo moderno não é fundado na razão ateia, mas sim na
irracionalidade da idolatria.
Ou como diz, Hinkelammert, a “razão moderna é a racionalização do
irracional”. Aliás, o pequeno texto de Walter
Benjamin, “O capitalismo como religião”,
publicado pela primeira vez em 1985, tem suscitado muitos debates sobre esse
tema também entre pensadores não ligados à teologia.
A obra coletiva “A luta dos deuses” (1980), que é
um marco na TL, já defendia que o problema central do mundo moderno não é o
ateísmo, mas sim a idolatria que exige sacrifícios de vidas humanas,
especialmente dos pobres, em nome de deuses da opressão do nosso tempo.
Assim como Israel lutou contra o “bezerro de ouro” e o Baal, hoje enfrentamos a
idolatria do dinheiro, do mercado e do capital.
Ídolos são deuses que exigem sacrifícios de vidas humanas e
a adoração desses deuses fascina os seus “fiéis”; e esses exploram e matam em
nome de uma missão sagrada. Por isso, diante de idolatria, não basta denunciar
injustiças pois essas não são vistas como algo mal a ser combatido, mas como
“sacrifícios necessários para a salvação”. Essa percepção deve mudar
nossa forma de fazer pastorais e lutas sociais. (Continua)
É autor, com N. Miguez e J. Rieger, do “Para além do espírito do
Império”, Paulinas. Twitter: @jungmosung
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