José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital
No Domingo de Ramos passado fui entrevistado por quase uma hora por um programa de rádio de uma emissora do interior da Bahia e que é dedicado à questão da relação entre fé e exercício da cidadania. Nos estúdios da rádio, além do apresentador do programa, estavam pessoas da comunidade que me dirigiam comentários e perguntas. Numa das perguntas que me foram dirigidas o interlocutor me perguntava se o papa Francisco precisaria realizar alguma reforma no campo da Liturgia. Respondi-lhe positivamente sem pestanejar, afirmando que o novo papa terá que devolver a Liturgia ao povo.
E ao fazer tal afirmação eu tinha presente o desmonte que foi sendo realizado nas últimas décadas no campo da Liturgia, dentro da Igreja Católica Romana. Além do retorno ao ultraconservadorismo, com alfaias mofas e missas em latim, nas quais o padre literalmente dá as costas ao povo, tivemos a usurpação das celebrações por padres exibicionistas que, ao invés de conduzir a assembleia para Cristo, atraem as pessoas para eles mesmos. Fazem da Liturgia verdadeiros shows nos quais o povo permanece iludido, mudo, paralisado e tratado como uma massa de idiotas. Tudo isso contraria a disposição dada pela Constituição Sacrosanctum Concilium (SC), primeiro documento promulgado pelo Vaticano II, e segundo a qual a Liturgia é uma ação eclesial que pertence e é realizada por todo o Povo de Deus e não apenas por uma meia dúzia de pessoas (SC,14).
No parágrafo apenas citado, a Constituição litúrgica salienta que todos os fiéis têm o direito e o dever de participar de maneira ativa e consciente da celebração litúrgica. Tal direito e dever decorre da plena cidadania cristãde todos os batizados e de todas as batizadas, em razão da participação no sacerdócio de Cristo, que faz deles e delas raça escolhida, nação santa, povo eleito de Deus (1Pd 2,4-10). Por ser a Liturgia a primeira e necessária fonte da vida cristã – continua o documento conciliar sobre a Liturgia – os bispos e padres têm a obrigação de oferecer uma profunda formação litúrgica que permita a todos os batizados e a todas as batizadas participarem plenamente das celebrações litúrgicas. Mais adiante (SC, 28) a Constituição litúrgica esclarece que para que haja plena participação de todo o Povo de Deus nas celebrações é indispensável que aquele que as preside faça tão somente aquilo que lhe compete no exercício da presidência litúrgica. E não só isso. Cabe-lhe também o dever e a obrigação de, enquanto presidente, respeitar e fazer respeitar o específico de cada ministério e de cada serviço dentro da Liturgia, não lhe sendo permitido usurpar ou permitir que se usurpe aquilo que pertence a outros ministérios e serviços (SC, 29).
Nesta mesma perspectiva o documento conciliar pede que se promova a participação ativa de todas as pessoas que se fazem presente na celebração litúrgica, de modo que a Liturgia não termine sendo reduzida a um espetáculo, ao qual algumas pessoas assistem (SC, 30-31). Por esse motivo, salvaguardada a diversidade própria dos ministérios, "não haja nenhuma acepção de pessoas particulares ou de condições, quer nas cerimônias, quer nas solenidades externas” (SC, 32). Isso nos diz que, de acordo com a Constituição litúrgica do Vaticano II, não há mais lugar para expectadores dentro de uma celebração da Liturgia. Todos os que se fazem presentes têm o direito e o dever de participar, de modo que se pode concluir que a comunidade reunida em torno do altar é o único sujeito ativo da celebração. Numa liturgia não existem os que celebram e os que assistem, mas todos são celebrantes, embora cada um e cada uma participa da celebração a partir da função que brota da sua vocação específica e dos carismas e ministérios recebidos do Espírito (SC, 7).
Recentemente pude vivenciar toda essa riqueza proposta pela Constituição litúrgica do Vaticano II. Celebrei o Tríduo Pascal com um grupo de pessoas no Mosteiro da Anunciação do Senhor, em Goiás (GO), cidade goiana conhecida mundialmente por sua arquitetura colonial. Éramos um grupo pequeno de hóspedes do mosteiro e membros da comunidade local. Havia uma diversidade muito grande de pessoas que ia desde o cidadão simples e comum até professoras e professores de universidades. Cada celebração foi intensa e bem participada. Nenhum dos presentes se sentiu excluído e mero expectador. Ninguém usurpou a cidadania eclesial dos outros, mas todas e todos participaram intensamente de cada momento litúrgico, sempre a partir da sua vocação e missão na Igreja e na sociedade. Na sexta-feira santa não havia padre, mas nem por isso a Liturgia da Paixão deixou de ser feita e bem vivida. A missa da Ceia do Senhor e a Vigília Pascal foram presididas por um presbítero haitiano que fazia estágio na comunidade. Mas em nenhum momento o padre quis ser a estrela da celebração. Exerceu sua função de presidente da assembleia litúrgica com discrição, simplicidade e dignidade, sem tirar dos demais ministros e litúrgos o espaço que lhe era próprio. Por esse motivo as celebrações foram intensas, leves e profundamente revestidas de grande unção. Basta dizer que a celebração da Vigília Pascal teve início às três da manhã do domingo e se estendeu até as seis, quando concluímos este momento celebrativo com um delicioso "café acompanhado”, segundo a belíssima expressão da cultura local.
Precisamos, pois, retomar o espírito litúrgico do Vaticano II, uma vez que a Liturgia é a principal manifestação da Igreja local (SC, 41). Neste parágrafo o documento conciliar deixa bem claro que as celebrações litúrgicas são o retratoda diocese. Se nelas as pessoas são tratadas e agem como meros expectadores isso significa que nesta diocese não há Igreja de Cristo, mas apenas uma caricatura dela. De fato a palavra Igreja (do latim ecclesiae do grego ekklesía) literalmente significa a assembleia daqueles e daquelas que foram convocados e reunidos por Deus Pai, por meio do Filho e na força do Espírito. Nesta assembleia todas e todos são "pedras vivas” (1Pd 2,5), ou seja, membros ativos, participantes do mesmo e único sacerdócio de Cristo, cidadãos e cidadãs do Povo de Deus (1Pd 2,9-10).
Portanto, quando a Liturgia é manipulada e controlada por algumas pessoas; quando é propriedade particular de alguns, isso quer dizer que também a Igreja local não é Povo de Deus, mas apenas o curral onde "ladrões e salteadores” mantêm os batizados e as batizadas presos e escravizados (Jo 10,1-6). Se na Liturgia não há espaço para a diversidade, isso significa que na Igreja local não há espaço para a variedade de vocações, carismas, ministérios e serviços suscitados pelo Espírito (1Cor 12,4-13). É uma Igreja atrofiada, ou melhor, monstrenga, na qual alguns "carismáticos” usurpam o espaço dos demais membros (1Cor 12,14-21). E, lamentavelmente, há muitas dioceses completamente monstrengas por esse mundão afora. E para corrigir essa deficiência só há um caminho: fazer florescer a dimensão comunitária da Liturgia, devolver a Liturgia ao povo (SC, 42). Que o papa Francisco, em sua reforma, não se esqueça disso. Cuide para que as liturgias deixem de ser "ações privadas” e voltem a ser sacramentos de unidade do povo santo de Deus reunido mediante convocação da Trindade Santa (SC, 26).
[*Filósofo, teólogo, escritor, conferencista e professor universitário. Autor de Viver em Comunidade para a Missão. Um chamado à Vida Religiosa Consagrada, por Paulus Editora. Mais informações http://www.paulus.com.br/viver-em-comunidade-para-a-missao-um-chamado-a-vida-religiosa-consagrada_p_3083.html].
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