sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

DOM HELDER CAMARA, IRMÃO E PROFETA

(7 de fevereiro de 1909 – 27 de agosto de 1999)
EM COMEMORAÇÃO AO DIA DE NASCIMENTO DO DOM
Primeira cena:
Quando da celebração da Missa de corpo presente de Dom Helder no pátio da catedral de Olinda e Recife, em 28 de agosto de 1999, acontece algo inusitado: de repente uma pessoa se solta do meio da multidão e coloca a bandeira do Movimento dos Sem Terra sobre o caixão do Dom: um profundo silêncio, alguns olhares perturbados, o Núncio Apostólico, presidindo a cerimônia, pergunta a um dos padres: “Que bandeira é esta?!” ..... Ninguém ousa remover este símbolo por mais justiça e paz na terra. Mais tarde, ao sepultar o corpo cansado do Dom, a bandeira permanece onde fora colocada, e, pouco a pouco, há de integrar-se à terra junto com aquele que dedicou a sua vida à defesa daqueles que não “possuem um palmo de terra para sobreviver”, como rezava em sua oração à Mariama na ‘Missa dos Quilombos’.
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Segunda cena:
Quando da exumação dos restos mortais do Dom, em 17 de agosto de 2012, se encontrava lá a bandeira do MST intacta, envolta nos restos do caixão. O corpo, as roupas, o próprio caixão, tudo consumado pelo tempo. Só a bandeira intacta! Hoje está exposta no memorial do Dom na Igreja das Fronteiras no Recife.
O que o Dom nos ensina?
Em toda sua vida, Helder Camara deixou-se modular por Deus. Que Deus? O Deus dos pequenos, dos pobres, dos maltrapilhos, dos sem terra, sem teto, sem roupa, sem participação no assim chamado progresso do mundo. É o Deus dos povos da América Latina, chamada por Dom Helder de “a vila cristã do mundo pobre”. Na sua “Sinfonia dos Dois Mundos”, ele analisa que a miséria é a violência n.° 1 deste mundo pobre, afirmando: “Miséria que engloba sub-habitação, sub-trabalho, sub-diversão, sub-saúde, sub-vida, opressão: são estas as formas de violência que geram todas as outras”. É neste mundo que ele via-se presente. Era bispo da Igreja, mas era bispo para o mundo, tornando-se “sal da terra e luz do mundo” (cf. Mt 5, 13.14), como o Evangelho de Cristo manda ser todos os seus enviados.
Ele se tornou, assim como nosso Dom Aloísio, um dos arquitetos de uma Igreja presente no mundo, a partir e no meio dos empobrecidos. Na vida destes, ele não queria ser somente mais um que praticava a caridade, mas levava os próprios pobres a entenderem as causas da pobreza, da miséria, do descaso, apontando para as estruturas sociais, os mecanismos econômicos e a falta de compromissos políticos. Ele disse: “Homem, meu irmão, que fizeste dos pobres? Que fizeste da Ásia, da África, da América Latina da terra batida, da criança ensolarada?”. E ele dava seu recado: “Dizem que estar do lado dos pobres é comunismo, mas é ..... é Evangelho, Mariama!”
O Dom nada fazia sem consultar seu maior amigo: o próprio Cristo, com quem manteve longas conversas na madrugada de todos os dias, diante do altar de quem dançava, inspirado por quem escrevia seus discursos, suas poesias, suas cartas e no altar de quem derramava lágrimas todas as vezes quando celebrava o amor de Cristo vivido na celebração eucarística, isto é na partilha do pão, gesto este que continuará “mistério”, enquanto a humanidade toda não aprenda a partilhar seus dons espirituais e materiais.
Encontramos deste modo o profeta Helder.
Profeta é aquele que, na calada da noite, escuta seu Deus a fim de saber a quem se dirigir e o que falar, pois o profeta é aquele que empresta sua língua a Deus a fim de que Este fale.
O profeta é livre. Dom Helder, mesmo vivendo, como todos nós, dentro das rígidas estruturas da igreja e da sociedade, as mesmas para ele não pareciam existir, embora, como testemunha um amigo confidente dele, “ele tenha sofrido um bocado por causa de um determinado funcionamento delas.” Um dia, Dom Jacques Gaillot, bispo de Partênia (Norte da África), amigo de Dom Helder, dizia: “Quando a gente tem medo não é livre, e quando é livre mete medo!” O Dom era livre e temido por aqueles que promoveram as injustiças e a opressão em nosso país, seja durante a ditadura como anterior e posterior a ela, exatamente por causa desta liberdade, enquanto ele, Helder, não tinha o que temer! É nesta liberdade vivida, que nascera a denúncia nas palavras do Dom: denúncias contra todas as formas de sofrimento humano. E é na denúncia que o profeta faz germinar o anúncio, o anúncio da dignidade humana.
O profeta testemunha! Dom Helder optou livremente por uma vida austera, simples, junto dos seus irmãos, os pobres, seguindo os exemplos de dois gigantes do amor aos pobres na história: Francisco de Assis e Vicente de Paulo. O testemunho do Dom da Paz brotava justamente do perfeito equilíbrio, que havia nele, entre contemplação e ação, fé e vida.
Que a sociedade e, de forma especial, as igrejas, permitam que haja sempre homens e mulheres livres, desimpedidos e com os pés no chão, na vida real, testemunhando o dom da “vida em abundância”, cantado por Reginaldo Veloso como “o sonho mais lindo de Deus”. Dom Helder realizou aquela parte deste sonho de Deus que lhe coube. Nossa homenagem a este grande cearense será tornarmos real, na vida dos outros, este sonho de Deus.
 
Geraldo Frencken, teólogo
           
Fortaleza, fevereiro de 2015
FONTE: ENVIADO POR E-MAIL PELO AUTOR

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