A pulsão de vida do capitalismo é sua pulsão de morte: a acumulação. Entrevista especial com Luiz Gonzaga Belluzzo
"A acumulação de riqueza no capitalismo não se faz ao largo dos critérios meritocráticos", adverte o economista.
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A pulsão de vida do capitalismo é sua pulsão de morte: a acumulação. É nesse sentido que o professor doutor Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista por telefone à IHU On-Line, sustenta que Thomas Piketty apresenta um argumento claro sobre a ineficiência do capitalismo para combater a desigualdade.
“As alterações no desenvolvimento do capitalismo
levaram a uma série de relações, dentre estas variáveis, que na verdade
não dão dinamismo ao capitalismo. Ele demonstrou uma coisa muito
importante, que a acumulação de riqueza no capitalismo não se faz ao
largo dos critérios meritocráticos que muitos alegam ao justificar as
diferenças de renda e riqueza. Ao contrário, uma boa parte da riqueza
acumulada é gerada na herança. Isso é muito importante, pois pouca gente
tinha formulado”, sustenta.
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“Em geral, os ideólogos do capitalismo
dizem que ‘quem acumulou riqueza é porque mereceu’. Não, nada disso. Boa
parte de quem acumulou renda o fez porque herdou. Isso permite que eles
poupem mais e, desse modo, acumulem mais riqueza financeira ou
material”, complementa.
Além disso, Belluzzo
lembra que as conquistas dos trabalhadores dentro do capitalismo não se
originaram por conta do sistema, mas por meio das lutas sociais das
próprias pessoas. A temática, entretanto, não se reduz ao aspecto
econômico. “Eu falei do Wright Mills, mas podia ter falado de Adorno, de Marcuse,
em teóricos que viam a desigualdade não somente do ponto de vista
econômico, para mostrar que em uma sociedade democrática era preciso que
os homens tivessem acesso igual à educação, à cultura. Essa dimensão de
desigualdade, nos últimos anos, foi muito maltratada, porque é preciso
ter igual acesso à comunicação para que se possa exigir dos meios de
comunicação que sejam corretos no fornecimento da informação”, avalia.
Ao pensar sobre a realidade nacional, Belluzzo argumenta que no Brasil
a desigualdade tem raízes distintas das observadas nos Estados Unidos
ou na Europa. “Nós jamais tivemos um estado de bem-estar, ao contrário,
temos uma desigualdade estrutural e secular que agora está começando a
ser corrigida na margem porque se está mudando a desigualdade dentro da
escala de salários”, pontua. Ao projetar o futuro, o professor chama
atenção para o conservadorismo que ainda permanece no país. “Aqui as
elites não estão dispostas a ceder nada. É uma luta política que vai
levar anos, e o pouco que se conseguiu avançar já produziu uma revolta e
uma indignação despropositada e assustadora, alegando-se que quem
recebe Bolsa Família é vagabundo. Isso é tão pouco no
que representa o total de gastos do governo e é tão importante para as
famílias que recebem, apesar de ser pouco, que eu tenho a impressão de
que o grau de crueldade das pessoas é muito maior do que a gente pode
imaginar”, reflete.
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano de Planificação-Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e, atualmente, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Confira a entrevista.
Foto: wikimedia.org |
IHU On-Line - Como os conceitos de desigualdade e igualdade são tratados a partir da perspectiva econômica?
Luiz Gonzaga Belluzo – Este é um tema permanente na literatura econômica. Por exemplo, o economista John R. Commons escreveu um livro sobre distribuição de renda no início do século XX.
Sendo ele um institucionalista, cuidou de assuntos que relacionavam o
bem-estar das pessoas à teoria econômica. Ele sofreu perseguições
ideológicas nos Estados Unidos por conta do que era considerado
inapropriado como tema de economia. Estava-se em pleno domínio da teoria
neoclássica, que considerava esse tema da desigualdade irrelevante,
entre eles, Robert Lucas. No entanto, este tema foi tratado quase que marginalmente dentre os temas da teoria econômica. Porém, o que aconteceu no século XX, no entreguerras, de 1918 a 1939, com a Grande Depressão
e no pós-guerra, suscitou a preocupação com as condições de vida das
classes não proprietárias e estudos sobre distribuição de renda; um
deles é de Simon Kuznets, estudo este em que Piketty
comenta sobre um momento no qual a distribuição de renda estava
melhorando, em que ele “criou” uma lei que descrevia a evolução do
padrão de distribuição de renda: no início dos processos de
desenvolvimento do capitalismo a desigualdade aumenta, mas retrocede à
medida que a economia cresce. O livro de Karl Polanyi, A Grande Transformação (Lisboa:
Edições 70, 2012), escrito em 1944, não é propriamente sobre
distribuição, mas trata do assunto, pois refere-se à pobreza, à posição
das pessoas na pirâmide de renda e do funcionamento do mercado
autorregulado, concentrador de renda e de riqueza. Polanyi é um pensador
que fala sobre as condições de vida dos trabalhadores submetidos às
instabilidades de mercado autorregulado.
Estes foram temas marcantes no
pós-guerra por conta de todas as políticas de bem-estar social. A
literatura rooseveltiana, nos Estados Unidos, levava em conta essa
questão da pobreza, da inclusão, da desigualdade, etc. Houve um esforço
do New Deal para reduzir as desigualdades, e o próprio Roosevelt
tratou disso em vários discursos, e em quase todos eles, nos anos 1930 e
1940, falou sobre a desigualdade. Este tema voltou a ser importante no
pós-guerra, cujas políticas sociais e econômicas tinham a ver com o
desemprego e a desigualdade.
O que acontece a partir dos anos 1980, e é isso que Piketty mostra, é que houve um período, dos anos 1930 aos 1970, em que ocorreu uma redução da desigualdade causada por vários fatores. Piketty
aponta que as duas guerras causaram uma redução no poder da riqueza em
determinar as posições ativas da distribuição de renda. A partir dos
anos 1980, as políticas ditas reaganianas e thatcherianas, ou se
preferir neoliberais, mudaram completamente as orientações da política
econômica. Inclusive com a defesa da desigualdade, pois como as
economias perderam vigor nos anos 1970 era preciso desbloquear as
coalizões que bloqueavam o desenvolvimento do capitalismo, defendido por
Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Era preciso acabar com tudo aquilo e liberar as forças de mercado para
que a criatividade dos indivíduos tornasse mais dinâmico o movimento,
baseado na teoria do gotejamento. Mas o que é essa teoria? É a ideia de
que se precisava reduzir a carga tributária, que tinha sido elevada no
pós-guerra, justamente, para permitir a redistribuição de renda, era
preciso desonerar os ricos dos pesos dos impostos das alíquotas
marginais — aquelas que incidem sobre os rendimentos mais altos — cuja
tabela era progressiva conforme o tamanho da riqueza. Isso tudo
contribuiu para o aumento da desigualdade, agravado pelo fato de que em
um segundo momento houve o deslocamento da produção para regiões
manufatureiras onde os salários são mais baixos.
IHU On-Line – O livro O Capital
no Século XXI, de Thomas Piketty, apresenta um estudo econométrico
apontando que a desigualdade só aumentou desde a obra de Karl Marx. Como
este trabalho é apresentado?
Luiz Gonzaga Belluzo – Piketty
fez um trabalho de longuíssimo prazo, pegando alguns aspectos
históricos interessantes. Em seu estudo, o que ele chama de capital não é
a mesma coisa que Marx chama de capital, ainda que no fim haja uma convergência entre eles. Piketty,
por exemplo, não trata das condições de produção do modo capitalista.
Para ele, o capital é o estoque de riqueza acumulado por algum grupo
social que lhes dá direito a um rendimento diferenciado. O autor faz uma
análise muito interessante sobre as metamorfoses da riqueza e dos modos
de distribuição dos patrimônios privados com base em documentos sobre a
posse de terras, de rendimentos, das fábricas, dos títulos imobiliários
e todos os títulos financeiros — as ações, inclusive.
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"Uma boa parte da riqueza acumulada é gerada na herança" |
Piketty atribui o
declínio às duas guerras e à depressão. A economia de guerra era uma
economia planejada que impedia que houvesse alterações muito grandes na
distribuição da riqueza e da renda, era preciso fazer promover o
sentimento de pertinência para obter a concordância das pessoas com o
pagamento de tributos destinados a financiar a guerra ou emitir dívida
pública com taxas de juro muito baixas. Isso, além do racionamento que
atingia todas as camadas de renda e riqueza.
Piketty trata de
maneira apropriada o que aconteceu no pós-guerra, um período marcado
pela execução de políticas que tentaram reduzir as diferenças de renda e
riqueza por meio de repressão financeira e do controle social da
economia, com incentivos para que o sistema bancário e financeiro
financiasse a expansão da economia. A espetacular subida das cargas
tributárias em todos os países foi fundamental para promover a
distribuição para os que estão na parte inferior da pirâmide. Neste
momento são criados todos os direitos sociais e econômicos que garantam
renda mínima para os que estão lá embaixo.
A economia cresceu a taxas elevadas com a
reconstrução da Europa e dos Estados Unidos e isso foi feito com
aumento de salários reais, aumento de emprego e o surgimento de uma
classe média que aparece juntamente com a mudança na estrutura de
controle das grandes empresas americanas, o que faz surgir o fenômeno do
White collar. Tanto que Wright Mills escreve um livro chamado White Collar: The American Middle Classes (New York: Oxford University Press, 1969) justamente no momento em que a nova classe média americana estava surgindo.
Piketty diz que a
partir de 1980 houve uma desestruturação dessas formas que permitiram a
redução da desigualdade, e isso tudo tem a ver até com a mudança na
estrutura da empresa e o predomínio do capital financeiro que obriga a
redução do salário. Mas essa intuição não é somente de Piketty, mas de
outros autores como o próprio Joseph Stiglitz , Krueger , Robert Hall ,
etc. Há muitos autores que desde as décadas de 1980 e 1990 já falavam
sobre isso e já alertavam sobre onde aquele modelo de capitalismo iria
parar. Mais do que isso, houve autores, inclusive eu, que escreveram
sobre o aumento da desigualdade e os processos que nos conduziram à
crise, discutido no meu livro O capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013).
IHU On-Line - Como o senhor
avalia a importância do estudo de Piketty para pensarmos a atual
conjuntura econômica mundial? Que ideias novas o autor traz para o
debate?
Luiz Gonzaga Belluzo –
Penso que ele tenha feito um estudo profundo e um trabalho de grande
fôlego com embasamento estatístico sujeito a críticas. É importante
dizer isso porque as pessoas pensam que a estatística é uma coisa exata,
mas não é. A estatística existe exatamente porque certos fenômenos
exigem que se dê um tratamento probabilístico, pois não têm bases fixas e
necessitam de critérios e avaliações. Esse trabalho que Piketty faz é
muito interessante, porque estabelece conexões entre as mutações nas
formas de riqueza, a concentração do controle do capital em nível global
sob o comando dos grandes bancos e empresas, a diferença entre a
remuneração dos executivos e o aumento da desigualdade na apropriação da
renda gerada pelos trabalhadores e, por exemplo, a desmobilização dos
sindicatos.
Claramente ele mostra que as alterações
no desenvolvimento do capitalismo levaram a uma série de relações,
dentre estas variáveis, que na verdade não dão dinamismo ao capitalismo.
Ele demonstrou uma coisa muito importante, que a acumulação de riqueza
no capitalismo não se faz ao largo dos critérios meritocráticos que
muitos alegam ao justificar as diferenças de renda e riqueza. Ao
contrário, uma boa parte da riqueza acumulada é gerada na herança. Isso é
muito importante, pois pouca gente tinha formulado. Em geral, os
ideólogos do capitalismo dizem que “quem acumulou riqueza é porque
mereceu”. Não, nada disso. Boa parte de quem acumulou renda o fez porque
herdou. Isso permite que eles poupem mais e, desse modo, acumulem mais
riqueza financeira ou material. Porém, isso não dá dinamismo ao
capitalismo, gera um efeito contrário, promove um certo “apodrecimento”, parasitismo — para usar a expressão de Piketty.
IHU – Como podemos compreender os conceitos de Rente e Revenu que Piketty traz em sua obra?
Luiz Gonzaga Belluzo – Rente
é uma renda que decorre da propriedade. Revenu é um rendimento que pode
advir do trabalho ou da atividade produtiva dos empresários. O rente
decorre da simples propriedade de um ativo, enquanto o revenu decorre da
atividade econômica normal, da criação de valor baseado na mobilização
do emprego e na geração dos lucros empresariais. Nesse sentido, o
primeiro termo tem uma conotação moral, pois se trata do sujeito que
coloca seu dinheiro para trabalhar, é o que Marx chama dos rendimentos do capital fictício.
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"Em uma sociedade democrática era preciso que os homens tivessem acesso igual à educação, à cultura" |
IHU On-Line - O capitalismo trouxe mais desvantagens ou mais vantagens à problemática da desigualdade?
Luiz Gonzaga Belluzo – O
capitalismo ofereceu a oportunidade de melhoria dos padrões de vida
para as populações em geral, mas de uma forma muito desigual. Não se
pode comparar nem mesmo as condições de vida da classe operária no
começo da Revolução Industrial com
as condições de vida da classe operária hoje. Mas isso não foi
oferecido a partir das próprias tendências centrais do capitalismo, isso
foi conquistado pela luta social. Ou seja, o capitalismo pode abrir um
espaço à medida que ele cria novos meios e novas oportunidades para que
as pessoas tenham acesso aos bens da vida, aos bens que os sujeitos
produzem, mas isso não foi feito automaticamente.
É preciso que haja uma ação política, como foi feito nos Estados Unidos
e, sobretudo, na Europa do pós-guerra, para que as oportunidades
abertas sejam aproveitadas. É muito simplista responder que o
capitalismo é perverso — ele não é perverso nem benevolente —, ele
apenas segue suas regras. E quais são suas regras? São as de acumulação
de riqueza abstrata, esse é o objetivo dele. Agora, ao acumular riqueza
abstrata, ele cria oportunidade de melhoria de condições de vida que os
homens têm de conquistar por sua vida política e social.
IHU On-Line – Que outras
desigualdades, além da econômica, devem ser levadas em conta quando
tratamos deste tema? Piketty aponta algo nesse sentido ou seu estudo se
refere especificamente à questão da renda?
Luiz Gonzaga Belluzo – Há uma ultrapassagem da fronteira do econômico, como muitos pensadores já fizeram. Eu falei do Wright Mills, mas podia ter falado de Adorno, de Marcuse,
em teóricos que viam a desigualdade não somente do ponto de vista
econômico, para mostrar que em uma sociedade democrática era preciso que
os homens tivessem acesso igual à educação, à cultura. Essa dimensão de
desigualdade, nos últimos anos, foi muito maltratada, porque é preciso
ter igual acesso à comunicação para que se possa exigir dos meios de
comunicação que sejam corretos no fornecimento da informação. Então todo
esse aparato que constitui o mundo da cultura precisa ser oferecido aos
cidadãos, porque não basta ter uma sociedade rica e com a renda mais
bem distribuída, sem que se ofereça o acesso desses bens culturais a
estas pessoas. É por isso que nos Estados Unidos há pessoas que são bem
de vida, mas são completamente ignorantes sobre o mundo onde vivem.
Nesse sentido, faço a provocação do filósofo Bernard Stiegler:
O que vale a vida se você não sabe vivê-la? Não vale nada. É preciso
saber viver a vida para curtir os bens que a população e o progresso
técnico e econômico produziram.
IHU On-Line – Que impacto tem a
crítica a Thomas Piketty, feita pelo Financial Times, de que os ajustes a
“dados crus” feitos pelo economista teriam impactos nas conclusões da
pesquisa?
Luiz Gonzaga Belluzo – A
estas críticas outras pessoas responderam, afirmando que esses pontos
não eram importantes, pois não afetavam em nada as conclusões. Tanto que
ele nem respondeu, porque era uma tentativa de desqualificar um
trabalho que tem problemas como todo trabalho estatístico, que pode ser
melhorado ou requalificado, mas isso não incide sobre as conclusões que
ele tirou. São acusações do arco da velha, como alguns críticos de
Piketty fazem, de que o autor do livro teria desconhecido o esforço e o
mérito daqueles que ganharam mais dinheiro, o que ele demonstra
claramente não ser verdade. Em geral, no Brasil, a crítica foi triste,
pois os conservadores mostraram que não estão à altura de participar de
um debate destes. Não se pode querer desqualificar com argumentos muito
frágeis e ideológicos, porque a discussão que ele faz não é nestes
termos; Piketty vai lá e mostra como as coisas aconteceram. Ele está estudando isso há tempo, a exemplo de outros autores, tais como Edward Wolff, Dean Baker, James Albrecht, que diferentemente dele não fizeram um trabalho de campo com tanto fôlego e tanta solidez.
IHU On-Line – O próprio Piketty
disse que não conseguiu dados sobre a realidade brasileira para fazer
suas análises. Que países compõem o corpus de pesquisa do livro?
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"Aqui as elites não estão dispostas a ceder nada" |
Luiz Gonzaga Belluzo –
Ele olhou para os países europeus, como Suécia, Itália, Grécia, e também
para os Estados Unidos e a Argentina. A Inglaterra, que não referi
antes, é muito importante para o estudo dele. Piketty
percebeu que nos países europeus havia um padrão, já no Brasil ele não
usou os dados porque considerou que as informações do imposto de renda
acerca da riqueza não eram satisfatórias.
IHU On-Line – O senhor acredita que a análise e as soluções propostas por Piketty podem ser aplicadas no Brasil?
Luiz Gonzaga Belluzo –
As análises que ele fez sobre a desigualdade são um caso especial,
porque a desigualdade não se reduziu no Brasil no período em que se está
observando a redução da desigualdade na Europa. No nosso país fizemos o
movimento contrário, pois agora a desigualdade se reduziu ligeiramente
em um momento em que a desigualdade na Europa está aumentando, sobretudo
no que se refere aos rendimentos do trabalho. O Brasil teve,
anteriormente, um agravamento da desigualdade e isso não significa que
as pessoas passaram a viver pior. Uma família que sai do sertão da Paraíba e vem para São Paulo
melhora seu nível de renda sem diminuir a desigualdade, embora isso não
signifique, necessariamente, que ela passou a viver melhor, pois essas
pessoas vêm para a cidade trazendo as marcas da desigualdade do campo. O
Brasil, desde os anos 1970 até recentemente, apresentou aumento do coeficiente de Gini,
com índices de desigualdade muito impressionantes. Até porque a
inflação foi perversa, pois corrói a renda dos que não têm mecanismos
para se defender, e isso ocorreu ao longo dos anos 1980. Mas o nosso
país tem outra trajetória, pois não se ajusta à forma da evolução da
distribuição de renda e da desigualdade dos países que Piketty avalia.
A desigualdade no Brasil tem outras
raízes, outras dinâmicas e outras formas. Nós jamais tivemos um estado
de bem-estar, ao contrário, temos uma desigualdade estrutural e secular
que agora está começando a ser corrigida na margem porque se está
mudando a desigualdade dentro da escala de salários. É por isso que Piketty
não fez um estudo sobre o Brasil, porque não há os dados das pessoas
mais ricas, e os dados que existem acerca de renda e riqueza não são
confiáveis. Mesmo no caso dos países que o autor trata, ele avisa: “eu
posso estar minimizando as diferenças de renda e riqueza porque há muita
gente que tem suas fortunas nos paraísos fiscais”.
IHU On-Line – Que desafios estão postos ao cenário brasileiro com relação à desigualdade?
Luiz Gonzaga Belluzo - Piketty
faz uma sugestão radical propondo um aumento sobre o imposto e a
riqueza. Ele mesmo sugere que é uma solução radical e que se vá ao
limite, mas eu não acho que isso seja possível, dadas as circunstâncias
políticas, sociais e econômicas que existem atualmente. Mas ele propõe
um imposto global sobre a riqueza como a única forma de reduzir a
desigualdade ou, pelo menos, impedir que ela continue a avançar.
Gosto do capítulo em que ele fala da taxa sobre o capital. Piketty
diz claramente que a taxa sobre o capital pode produzir efeitos que
diminuam a desigualdade de renda. Ele faz uma defesa muito clara, e eu
diria utópica, do imposto sobre o capital, porque isso exigiria um
esforço político muito grande daqueles que na verdade estão sentindo os
efeitos da desigualdade. Entretanto, quais seriam os argumentos dos mais
ricos? Eles ficariam desestimulados a acumular e, portanto, isso
causaria, em última instância, prejuízos aos próprios defensores desta
tese. Precisamos lembrar que no pós-guerra isso era possível porque as
atrocidades e as perdas de vidas foram tão grandes que mesmo
conservadores como De Gasperi e De Gaulle impuseram as regras de distribuição de renda dos impostos com relação aos mais ricos.
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"Eu tenho a impressão de que o grau de crueldade das pessoas é muito maior do que a gente pode imaginar" |
IHU On-Line – Piketty propõe
como solução para o problema da desigualdade a tributação das grandes
riquezas. Como o senhor avalia tal hipótese? Essa é uma alternativa
viável aos desafios à desigualdade no Brasil?
Luiz Gonzaga Belluzo – O sistema tributário brasileiro
é um dos mais desiguais do mundo. Se considerarmos o assalariado que
ganha até três salários mínimos, ele paga de imposto aproximadamente 52%
de sua renda. Quem é proprietário de ativos — por exemplo, um
proprietário de empresa ou um médico —, que cria uma empresa para fazer a
administração tributária, tem seus recursos gerados como dividendos,
não como salário, e por isso não paga imposto de renda. Se alguém recebe
como dividendo R$ 50 mil ou R$ 100 mil, não paga um tostão de imposto
de renda, nem na fonte nem na declaração. Então, o nosso sistema
tributário é uma coisa inacreditável, pois favorece o dividendo, a
poupança e a acumulação de riqueza por parte dos ricos e, assim,
pensa-se que vai beneficiar os pobres em alguma medida.
IHU On-Line – Considerando a
perspectiva econômica, como podemos pensar o desenvolvimento da
desigualdade ao longo da história do Brasil? Qual o papel de programas
como Brasil sem Miséria e Bolsa Família para o combate à desigualdade?
Luiz Gonzaga Belluzo – O Bolsa Família
tem uma função que é tirar um contingente da população da miséria
absoluta e o efeito distributivo dele é bastante modesto. O que melhorou
a distribuição de renda foi a política de reajuste do salário mínimo,
foram as políticas previdenciárias, que na verdade estão indexadas ao
salário mínimo. São esses aspectos que melhoraram bastante a condição de
vida e a distribuição de renda, permitindo que muitos ascendessem à
condição de assalariados capazes de ter um padrão de consumo razoável
com relação ao resto da população. Mas o resto são ações muito
limitadas. É preciso começar de alguma maneira, e no Brasil
as resistências são muito grandes, enormes. No período que precedeu o
golpe de 1964, tentou-se o estatuto do trabalhador rural, e houve, nas
usinas e nas fazendas, trabalhadores que foram fuzilados. O que
aconteceu não foi brincadeira. Aqui as elites não estão dispostas a
ceder nada. É uma luta política que vai levar anos e o pouco que se
conseguiu avançar já produziu uma revolta e uma indignação
despropositada e assustadora, alegando-se que quem recebe Bolsa Família
é vagabundo. Isso é tão pouco no que representa o total de gastos do
governo e é tão importante para as famílias que recebem, apesar de ser
pouco, que eu tenho a impressão de que o grau de crueldade das pessoas é
muito maior do que a gente pode imaginar.
Por Ricardo Machado
FONTE:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/533672-o-capitalismo-parasitario-como-a-pulsao-de-morte-do-capitalismo-entrevista-especial-com-luiz-gonzaga-belluzzo
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