Era um compromisso quase obrigatório. Viajar num pau-de-arara de Fortaleza a Santana para assistir a um ato religioso. O Padre Zé Maria celebrava sua primeira missa e queríamos testemunhar. Apanhamos, na companhia do Wagner, companheiro de infância, ginásio e boemia, o Ford vermelho do Caubi Machado, quase uma réplica de seu carrossel preguiçoso. E rumamos para a terrinha, cumprindo, assim, o tributo ao jovem ministro da Santa Madre que viria a ser, ao longo de seu apostolado, uma espécie de Padre Ibiapina moderno. Avesso a rituais solenes, voltado para a verdadeira essência do cristianismo: fazer o bem ao semelhante.
José Maria Cavalcante Costa, da estirpe dos Sabinos e Pessoas, teve a rara oportunidade de estudar num bom colégio. Naquele tempo, terminava-se o curso primário na terra natal e nada mais havia o que fazer senão esperar por um concurso público. Correndo o risco de, na ociosidade, aprender a jogar sinuca, beber cachaça e ser sustentado pelos pais. Às mulheres, restava a máquina de costura e o pé de fogão ou a escravidão do casamento. Zé Maria vislumbrou uma luz adiante e falou em alto (e bote alto nisso) e bom som para os familiares: “Quero servir ao reino do Senhor”. Arrumou as malas e partiu para Fortaleza, onde internou-se no Seminário da Prainha.
Por essa época, início dos anos 1950, havíamos feito a primeira comunhão e já envergávamos a fitinha amarela com cruz azul da Cruzadinha Eucarística. O pai queria mais, ele que também cursara o seminário do Outeiro da Conceição. Porém se contentou em nos ver de batina vermelha, a dos coroinhas. E imaginava ser meio caminho andado. Pois. Num período de férias fomos, com Antonio Cajueiro e Fransquinho do Henrique, ambos do Alto da Liberdade, ao casarão do Seu Batista Sabino, na praça da Matriz, aprender com o diácono Zé Maria a santa missa no mais puro e sacrossanto latim.
Os anjinhos não estavam, harpas em punho, nas nuvens da portaria. E, sim, o Chico Oscar, sacristão enérgico, ditatorial, caxias, quase um torturador. Sua autoridade nos inibia e, ao mesmo tempo, revoltava. Dava coragem e vontade de jogar-lhe o perfumado turíbulo na corcunda. Mas a paz chegava com a diplomacia vaticana do vigário Joviniano Sampaio; o aroma inebriante do vinho de uvas Pindorama e as férias providenciais do Zé Maria, pré tonsurado. Com a novidade: para suplantar seu possante vozerio mandou fazer, em umburana de cheiro, duas conchinhas conjugadas, tipo matracas manuais. E deste modo disciplinava melhor seu diminuto rebanho de almas inocentes.
O pequeno invento artesanal servia de batuta para ensaiar um hino de guerra do qual não entendíamos o sentido e a serventia. Confira a letra e veja se não é grego: “Catafal, catafal, catafal... fal, fal, fal, fal! Batum, betum, betum; Chemixunga, cariunga; chemixunga, cariunga. Chemixunga alê chemixunga... Querungá, querungá (...) Que-que-oi...que-que-oi... Ransqueriquim!”. E perdoem, não dá pra lembrar mais, pudera, já lá se vão sessenta anos. E embalados por tão esdrúxulo bendito os cruzadinhos da Dona Nazaré saiam do Salão Paroquial, bons-pontos no coração, para a visita ao Santíssimo na Matriz que olhava para o espelho do rio Acaraú.
Talvez graças a este estranho estribilho tenhamos alçado a patente de apóstolo com divisas azuis sobre o tafetá amarelo. E a missão de conduzir a equipe de subalternos aos maçantes ritos litúrgicos, creiam, nada fácil. Nossos discípulos: Aroldo do Zezé. Zé Péricles da Maura, Zé Haroldo e Aurélio Vera Cruz, Antonio e Zé Maria Medeiros. Já a batina vermelha, quase que não mais a usávamos. A flanela manchada de óleo do Santíssimo encurtara para o meio das canelas devido ao estiramento dos ossos que nos valeram solenes apelidos como “ferrolho de igreja” e “espanador do céu”, todos abençoados.
E vale lembrar aqui os nomes dos acólitos daqueles ontens: o dito Antonio de Pádua, Cajueiro, lugar-tenente do Chico Sacristão e mais Francisco Farias, Zequinha do Domingos, Capotinho, Edmilson da Cristina, Vilemar e Antonio da Dondon e Raimundinho da Bebel (catequista Isabel do Alprim). Foi quando houve mudança na presidência da Cruzadinha. Ostentaríamos (mana Dione na ala feminina) a faixa larga e estrelada e o pai que queria nos ver no Seminário Jesuita de Baturité talvez até se desse por satisfeito. Nada feito. Renunciamos ao cargo antes da posse, por pura timidez. Melhor assim, já que nem havíamos dado conta da desastrada equipe. Padre Fernando tomara-a da nossa alçada entregando os tarcisinhos órfãos ao presidente Edmarzinho Carneiro que continuou no cargo.
Enfim, o Zé Maria elevando hóstia e cálice consagrados. A missa solene foi a 3 de novembro de 1964. Uma data significativa para o nosso sacerdote. Aniversário da cidade onde nasceu e ano do golpe militar que lhe causou tantos dissabores. O ato teve lugar ao relento, campal como se dizia. Para a alegria de Dona Helenita, a irmã querida, e todos os familiares e conterrâneos.
O evento saiu do patamar da Matriz de Senhora Santana para o Alcione Clube onde o novo padre foi saudado por Chagas Vasconcelos e Zequinha Arcanjo. E no Ginásio Santanense, recebido com carinhosas palavras do professor Arcanjo Neto e alunos Cardoso Costa e Ivonete Araújo.
Meio canonizado, Zé Maria saiu por aí a exercer o seu apostolado com uma decisão: a opção pelos pobres e desvalidos. Tornou-se um verdadeiro missionário, andarilho, peregrino, arauto da verdade em Cristo. Aratuba, Palmácia, Messejana, Guajerú, Ideal, Timbaúba... tortuosos caminhos, senda onde palmilharam sandálias rotas, pregando o verbo divino, amenizando mazelas humanas. Na trilha, pequenas imitações das Casas de Caridade do missionário Padre Ibiapina, mas aí eram outros tempos, até mais tenebrosos. A defesa do Padre Zé Maria pelo bem estar do homem do campo foi mal vista pela ditadura recém estabelecida que lhe impôs represálias. Não se curvou e fez tremular ainda mais a bandeira de sua luta.
Em 1987 nossa personagem cruza o Atlântico, visita França e Alemanha. De volta com experiência e vontade para implantar o Cetra, entidade de apoio à Pastoral da Terra. Era Arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Cardeal Lorscheider.
Eis o resumo da ação do Padre Zé Maria, com suas próprias palavras: “ A gente tinha como preocupação principal que o trabalhador fosse sujeito da própria história. De que eles, realmente, pudessem caminhar com seus próprios pés (...) começassem, não só a ler, mas enxergar, conhecer as leis”. E arrematou citando Cristo: “ Eu vim para que todos tenham vida. E vida é mudança”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário