Contra os fanáticos, é preciso de mais teologia. Artigo de Massimo Faggioli
Depois dos fatos de Paris,
a melhor resposta é mais teologia, mais cultura religiosa. Um papel
maior e diferente para a religião no espaço público não significa
necessariamente um Estado menos laico.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio LeftWing.it, 14-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
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Eis o texto.
Diante dos fatos de Paris, em que terroristas islâmicos exterminaram a redação do jornal satírico Charlie Hebdo e derramaram sangue de franceses laicos, muçulmanos e judeus, a tarefa do teólogo é, ao mesmo tempo, simples e complicada.
Simples, porque, por vocação (em sentido tanto profissional quanto
espiritual), o teólogo sabe que a única resposta de longo prazo é o
diálogo entre pessoas e a escavação dos significados que se ocultam
atrás de cada palavra que cita o nome de Deus – e, no caso dos
assassinos de Paris, essas palavras que citavam Deus como motivo eram
claramente blasfemas.
Mas também é uma posição muito complicada a do teólogo, que se sente
obrigado a dar razão em público não só da sua própria teologia, mas
também da teologia dos outros (em uma espécie de teodiceia atualizada em
sentido inter-religioso) e especialmente daquela teologia que leva a
matar em nome de Deus.
As linhas que se seguem são apontamentos em torno da questão do papel
da religião e do sagrado em uma sociedade laica e pluralista, que não
têm nenhuma pretensão de dar receitas prontas para a solução do problema
do impacto das lutas internas ao Islã no mundo ocidental, mas tentam
limpar o campo de algumas simplificações que dominam o debate público.
A primeira simplificação perigosa é a de uma oposição dicotômica
entre uma laicidade tolerante e uma religião intolerante. É um efeito
deformador do caso francês, que se tornou o palco de uma semana de
terror, em que o separacionismo entre Estado, Igrejas e religiões chega a
um ponto muito próximo ao tipo ideal do sistema de separação. Mas essa
representação da dicotomia mente sobre o fato de que laicidade e
laicismo são diferentes, mas também sistemas e ideias diferentes de
laicidade: a francesa e a italiana são muito diferentes.
Vale a pena lembrar, além disso, as evoluções internas ao próprio caso francês: da Revolução à Loi de Separation de 1905, à Comissão Stasi de 2003-2004, até o presidente Hollande que, na noite do dia 9 de janeiro de 2015, quando afirmava que os terroristas que haviam matado em nome do Islã não eram verdadeiros muçulmanos, distinguia entre verdadeiro e falso Islã e, portanto, fazia uma afirmação teológica.
Na história recente da democracia ocidental, fazer afirmações
teológicas tem sido parte dos deveres constitucionais de um
presidente-pontífice como o dos Estados Unidos (de Thomas Jefferson a Obama) mais do que de um presidente da République Française: mas algo está mudando também na Europa, evidentemente.
Em segundo lugar, vale a pena recordar que à separação entre Estado e
Igreja na história ocidental não corresponde uma separação entre
religião e política (nos Estados Unidos,
há separação entre Estado e Igreja, mas certamente não entre religião e
política). Mas há também uma contradição lógica no discurso sobre
cristianismo e laicidade. Uma argumentação como a de Piero Ostellino, no Corriere della Sera, do dia 10 passado, que descrevia o nascimento do Ocidente como "saída da Idade Média,
separação da política da religião, cancelamento do domínio da fé
religiosa sobre a política e nascimento do Estado moderno", escondia
dois pedidos ao cristianismo que são simultâneas e incompatíveis entre
si: a Igreja deveria dar ao mundo a distinção (não separação, que
certamente não se verifica na Europa até tempos muito recentes) entre
religião e política, e, ao mesmo tempo, desaparecer, uma vez dada essa
distinção às outras religiões.
Para além do artigo de Ostellino, acredito que, ao
campo liberal-conservador e à visão da religião propagandeada pelos
"ateus devotos", o campo progressista deveria poder opor uma tese, se
não alternativa, ao menos própria.
Chegando às outras religiões, há um nexo entre o modo em que a
teologia olhou para as religiões como uma pluralidade de caminhos para
buscar Deus e o modo pelo qual os poderes públicos no Ocidente enfrentaram a questão.
Até apenas 50 anos atrás, para a teologia católica, as outras
religiões não existiam como tais, a não ser como acidente da história e
matéria para os missionários, dado que o fato religioso não cristão
existia apenas como fenômeno individual e não coletivo (falava-se de
judeus, não de judaísmo; de muçulmanos, não de Islã, e assim por
diante).
No Concílio Vaticano II, a questão da liberdade
religiosa emerge como uma questão de dignidade humana (o título da
declaração votada e aprovada pelos bispos no Concílio, em 1965, sobre a
liberdade religiosa é Dignitatis humanae): o
direito à liberdade religiosa deve ser respeitado (pela Igreja, assim
como pelos Estados), porque se fundamenta na dignidade humana; o
respeito pela dignidade humana implica o respeito pelo sentimento
religioso e pelas suas expressões, seja qual for a religião.
Isso me veio à mente ao ouvir e ler comentários publicados nos
últimos dias, segundo os quais o mais alto grau de liberdade no laico
mundo ocidental seria a liberdade de insultar o sentimento religioso
alheio.
A noção de um direito absoluto e ilimitado à liberdade de expressão
se aproxima muito da ideia que um certo tipo de pensamento "religioso"
tem de si mesmo. Não querer insultar as fés alheias não é
necessariamente autocensura, nem efeito do medo do terrorismo. Há
autocensuras boas e más.
O respeito pela dignidade das pessoas pode e, em certos casos, deve
levar a autocensuras. A teologia católica progressista, há 50 anos, se
fez a questão de como compreender melhor as exigências da dignidade
humana em um mundo concebido como povoado por um gênero humano uno e
único: a cultura política progressista deveria fazer algo desse tipo,
diante da apropriação da questão religiosa (e não pela primeira vez) por
parte do conservadorismo político.
A questão de fundo é, evidentemente, o papel da religião no espaço
público. Se é verdade (e é verdade) aquilo que disse o presidente
francês, Hollande, ou seja, que os agressores não eram verdadeiros muçulmanos, então é interesse supremo da laica República Francesa (e de todos os Estados) fazer com que os muçulmanos imigrantes sejam verdadeiros muçulmanos.
Em outras palavras, a ideia de que a religião não deve ter uma
dimensão pública, mas deve permanecer confinada no espaço
individual/pessoal não é equivocada teologicamente, mas historicamente.
Parafraseando o discurso do primeiro-ministro norueguês, Stoltenberg, depois do massacre de Utoya, instintivamente eu diria: "Depois dos fatos de Paris, responderemos com mais teologia, mais cultura religiosa".
Um papel maior e diferente para a religião no espaço público não significa necessariamente um Estado menos laico.
FONTE:http://www.ihu.unisinos.br/noticias/539099-contra-os-fanaticos-e-preciso-de-mais-teologia-artigo-de-massimo-faggioli
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