Um bispo da periferia escreve ao Papa
"Ainda se tem medo dos não religiosos. Acredita-se apenas nos
que foram transformados em membros do clero. Não se tem entendimento de
que uma maior participação dos não religiosos, e um maior envolvimento
destes, garantiriam ao clero, em todos os níveis, limitar o risco do
fechamento e da própria evangelização. É o não religioso que abre para o
mundo", escreve Aldo Maria Valli, jornalista, em artigo publicado pelo Europa Quotidiano, 25-09-2014. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.
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Eis o artigo.
Humildade, pobreza e espírito evangélico. As ordens de Francisco
neste sentido continuam. E envolve profundamente o clero, especialmente
os bispos! Se o fizerem, quer dizer que a Igreja, principalmente nos
seus pilares administrativos, está afetada. Afetada pela soberba,
vaidade, riqueza e falta de espírito antirreligioso. Mas estamos seguros
que basta apenas o pedido?
Dom Vinicio Albanesi, no livro “O sonho de uma Igreja diferente. Um bispo de periferia escreve ao Papa”
(editora Ancora, 112 páginas, 14,00 €), sustenta que a humildade e a
pobreza, também quando vêm aplicadas e realizadas, não são mais
suficientes. É preciso a reforma do sistema. Não somente as pessoas
devem se inspirar no Evangelho, mas também a
instituição. O pedido por um comportamento religioso não pode iniciar
continuamente se opondo a sua estrutura. É preciso revisar, no sentido
religioso, o esquema estrutural da organização da Igreja.
Dom Vinicio, responsável pelas Comunidades de Capodarco,
que possui quatorze comunidades residenciais espalhadas em dez regiões,
fala de um padre de estrada, habituado ao confronto com a dura
realidade. Fala também de um sacerdote (professor de direito canônico e
vigário judicial do Tribunal eclesiástico da região de Marche): uma dupla perspectiva que permite conceder julgamentos severos, mas não genéricos.
Vejamos o exemplo do desencontro entre as funções eclesiásticas e a fé das pessoas. Os dois mundos, denuncia Dom Vinicio,
são distantes. As funções são distantes, estranhas, duvidosas, se não
opositoras, em relação ao dia a dia das pessoas. Mas, nesse caso, os
pedidos feitos para com a boa vontade das pessoas não são suficientes. O
problema é afrontado quando se toca na sua estrutura. O direito de uma
Igreja repleta de características religiosas, machismo e autoritarismo.
Os conteúdos da lei parecem se preocupar somente com a vida do clero. Os
que não são ordenados somente são levados em consideração de uma forma
tangencial e como súditos.
No código do direito canônico existe uma atenção obsessiva para a
questão da autoridade: quem e como comanda. Eis o lado do autoritarismo.
O Papa Francisco deixa clara sua posição contrária à
carreira sacerdotal para o alcance dos objetivos. Mas esse problema é
estrutural. E ao lado desse autoritarismo existe a burocracia.
A atenção é voltada totalmente para a norma e não para as pessoas. A
consciência não está envolvida. O espírito religioso parece ser algo
estranho. A comunhão não tem lugar para se expressar, e assim é com o
colégio sacerdotal. E quem expõe o problema é visto como um perigoso
contestador que pretende levar a democracia para a Igreja. A Igreja se defende dizendo não ter a realidade política! E assim se fecham todas as possibilidades de discussão.
A verdade, sustentada por Dom Vinicio, é que o sistema, assim como está, é feito para garantir a uniformidade, e não a liberdade e unidade.
E, queremos falar da mistura entre o sagrado e o profano? Por que o
papa deve ser o chefe de Estado? Que coisas devem estar envolvidas entre
a política e o evangelho? Porque a Santa Sé deve ter embaixadores, e núncios, como um Estado? Por que a Igreja Católica
deve estipular acordos com o poder político entrando em uma lógica que
inevitavelmente se liga aos grandes poderes? Fala-se que estes
mecanismos garantem a liberdade. Estamos corretos? Não garantem talvez
qualquer coisa em contrário: acessos econômicos, privilégios,
compromissos? Tudo deve ser revisto inclusive o quadro para os que
possuem a gestão do dinheiro e das riquezas.
A história nos conta que os pedidos de honestidade e transparência,
um tanto nobres, são influenciadores. O problema, mais uma vez, está na
estrutura. Somente a redução drástica das funções civil (pensamos nos
diplomatas) e eclesiástica (as várias cúrias) pode permitir uma redução
dos custos e um afastamento real da Igreja da riqueza e das tentações.
Não se podem condenar as especulações financeiras e no mesmo tempo
manter um sistema que as necessita para alimentar a si próprio.
Qual é a Igreja que queremos? Este é o verdadeiro questionamento. Segundo Dom Vinicio, autor de outro livro instrutivo e encorajador, “Os três males da Igreja na Itália”, hoje em todos os níveis, a Igreja
surge como um mecanismo que tem muito a fazer com as normas e leis e,
pouco ou nada com o espírito. Temos uma visão distorcida da Igreja.
Falamos Igreja e pensamos em uma pirâmide, como um sistema
administrativo, dominado pela obsessão pelo poder: a Igreja como
estrutura que gerencia e administra o poder. E o Evangelho, onde está?
É preciso ter coragem de introduzir a reflexão sobre a natureza da Igreja. Se isso é feito, percebemos que grande parte da estrutura não possui nada a fazer com Jesus e o seu Evangelho.
São realizações humanas, revestidas de história, mecanismos modificados
pela sociedade civil e política. Enquanto sociedade humana a Igreja
certamente precisa também de regras. Mas hoje a regra prevalece sobre o
espírito e parece afastar as pessoas e as comunidades de Deus. As regras na Igreja possuem sentido se e somente se favorecerem o encontro com Deus.
Precisa-se de um grande trabalho de simplificação sendo necessário
colocar em primeiro lugar não o instrumento (a norma), mas a finalidade
(a aproximação com Deus).
O modelo de Igreja deve ser repensado completamente.
Do cunho administrativo, normativo e fechado deve se transformar em um
modelo espiritual, suave e aberto. Sem essa revisão até os mais nobres
conselhos de um Papa como Francisco são destinados a atingir somente superficialmente.
Uma Igreja obcecada pelas questões de poder e
funções é uma Igreja fraca, que no seu íntimo tem medo. É esse medo que a
leva a manter uma estrutura taxativa e sacerdotal. De onde pode vir tal
mudança? Não de um simples pedido de ajuda, mas de uma nova forma de se
pensar profundamente na ideia de Igreja. E também com a abertura para
os não religiosos. Hoje os que não possuem ordem religiosa são
observados como suspeitos pelo clero. Por melhores que sejam, vêm
considerados como instrumento inútil para desenvolver algumas funções de
serviço. É um colaborador, um subordinado. Não é um recurso, não é nada
por inteiro.
Ainda se tem medo dos não religiosos. Acredita-se apenas nos que
foram transformados em membros do clero. Não se tem entendimento de que
uma maior participação dos não religiosos,
e um maior envolvimento destes, garantiriam ao clero, em todos os
níveis, limitar o risco do fechamento e da própria evangelização. É o
não religioso que abre para o mundo. São os não religiosos que levam o
mundo para a Igreja, que colocam frente a frente os mundos, que permitem
que sejam feitas relações com a realidade.
A questão de tudo aquilo que os não religiosos levam consigo é aquela do sacerdócio comum. Não apenas quando do Concílio Vaticano II,
hoje também se pensa na Igreja como uma organização administrativa (uma
pirâmide) e não como uma comunidade em que todos que foram batizados
são iguais. Existe a vontade do Papa Francisco de
lembrar que na Igreja não existem diferenças! Na realidade toda a
organização favorece a diferença, contrária à igualdade. Temos uma visão
radical da Igreja, a qual ignora totalmente o fato que todo o que foi
batizado participa da tríplice função de ensinar, santificar e governar.
Para concluir, acima de tudo antes da chegada do iminente Sínodo, “O sonho de uma Igreja diferente” é uma leitura aconselhável.
FONTE: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/535704-o-sonho-de-uma-igreja-diferente-um-bispo-da-periferia-escreve-ao-papa
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