Peripécias da Mesa de La Valla
Nesta tarde, depois de Jantar, peguei o carro para ir a Valfleury, um povoado distante 20 km de l’Hermitage, do outro lado do vale do Gier, em direção oposta a La Valla. Ali, num lugar idílico, vive e trabalha Jean-François Telley, o carpinteiro ebanista que nestes dias está restaurando a Mesa de La Valla, que retirou de l’Hermitage no dia de Pentecostes.

Jean-François chamou-me, faz alguns dias: “Joan, restaurei uns 90% da mesa. É preciso que você venha para me dar sua opinião”. De acordo! Irei na próxima quarta-feira, respondi. “Chegarei tarde. Dou aula de escultura em Saint Etienne. Em torno de nove horas e meia”. Espero-o no jardim de sua casa, provando un verre com sua esposa, Anne-Marie, com quem tenho boa amizade. Foi ela que desenhou e pintou os quadros murais dos oratórios de l’Hermitage, no ano passado.
A Mesa nos aguarda na oficina de trabalho.
A espera torna-se agradável com o fundo musical de Bach. Jesus bleibet, a Cantata 147, que maravilha!... A voz humana misturada com o piar das cotovias, que originalidade! Falamos de pintura, de seu modo de expressão artística. Anne-Marie, que também leciona, emprega um linguajar com notório acento simbólico. Como eu, em algumas de minhas obras de arquitetura. De repente, senta-se conosco o amigo
Lluís Duch, monge beneditino do Santuário de Montserrat (coração espiritual da Catalunha): O símbolo é um meio para projetar-nos além da evidência. Não se impõe. Sendo equívoco, é aberto! Permite que cada qual o interprete, o traduza, o atualize agora e aqui, segundo sua situação e seu momento vital.

Lluís, formidável amigo! Tua erudição me acompanha, faz muito tempo, e hoje retornaste com força, na velada de Valfleury, em momento muito oportuno. Que libertação! La Valla, a partir deste ponto de vista, será uma experiência revitalizadora para todos. Não será, em absoluto, algo fechado, pietista, dogmático.

Por isso, recomendei a Jean-François que sua restauração deveria respeitar todas, absolutamente, todas as feridas e mutilações da história.
Em absoluto promover-lhe uma reconstituição. Vendo a mesa, devemos “ver” os primeiros Irmãos e encontrar-nos com o milagre de Amor que aconteceu entre aquelas paredes. Reproduzir esse cenário para que o então acontecido se atualize, hoje, em nosso interior. Sugestão? Não, simplesmente ativar toda nossa capacidade de compreensão simbólica para além da pura razão.
Estou ansioso para ver seu trabalho. Jean-François vive sua plena maturidade vital e criativa. No ano passado recebeu o prêmio de Melhor Escultor, ou artista, da França, em sua especialidade, o trabalho em madeira. Foi um presente que a Providência colocou em nosso caminho. Seus trabalhos são excepcionais.

O ruído do motor de um veículo nos adverte de sua chegada. “Bonsoir!” Saudamo-nos com carinho, enquanto trocamos um olhar pleno de cumplicidade. Sem mais palavras e com a emoção contida nos dirigimos a sua sala de trabalho. Não me deixa entrar. Deseja preparar o cenário! Vejo-o agarrar duas lâmpadas porque a noite caiu e a obscuridade é completa. “Vas-y” (entre!) me diz, abrindo a porta de vidro. Ali, no centro, está minha velha e querida mesa. Sinto um ligeiro tremor que dissimulo, pois, imagino que me observa discretamente. Almas criadoras, conhecemos muito bem esse momento excepcional e único: o instante em que você abre seu coração, seu trabalho, sua arte, ao olhar perscrutador de um colega ou do público em geral, enquanto, no peito, sente pulsar forte o coração, e o sangue gela nas veias. Esse instante em que qualquer contração, qualquer sinal é captado, amplificado e convertido em motivo íntimo da mais dolorosa frustração, ou de entusiasmo transbordante.
“Elle me plaît! Superbe!”, (Gostei! Magnífico!) digo-lhe com sinceridade, enquanto rompo o silêncio e esboço um sorriso. “Merci, Joan!” responde ele. Com certeza, o trabalho está excelente. Aparentemente, parece não ter feito nada. No entanto, rompendo o silêncio, começa sua explicação, profissional e detalhada.
Jean-François, cidadão francês de ascendência suíça, fala e se expressa muito bem. Explica e mostra como integrou e ocultou, nas entranhas da mesa, uma estrutura de aço maciço, “pour les siècles des siècles” – me diz ele. Amém! – respondo eu.

As gavetas, todas elas, estão reparadas. E substituiu aquela que fora roubada, faz uns anos. Irreconhecível. Ah! E todas as feridas, cortes, entalhes e furos, tudo isso respeitado. “Jean-François, parabéns; de você não esperava menos!” – “Obrigado, pela confiança de todos vocês”, respondeu.
Depois da visita, brindamos na intimidade. Um gole apenas, pois devo dirigir. Despeço-me com as badaladas da meia-noite. Caramba! Em l’Hermitage, todos devem dormir, faz um bom tempo. Uma grande lua, avermelhada e misteriosa, se levanta no horizonte de La Valla, do outro lado do vale escondido na obscuridade.

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Joan Puig-Pey, arquiteto
Joan Puig-Pey, arquiteto
FONTE:champagnat.org
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